Rompendo as Correntes Divinas: A Jornada de Libertação Espiritual de Sofia
- Uma criação rígida
- Introdução à família de Sofia e à comunidade das Testemunhas de Jeová
- A infância de Sofia e a iniciação na fé das Testemunhas de Jeová
- Experiências formativas na escola e interações com colegas fora da comunidade religiosa
- As regras e expectativas das Testemunhas de Jeová pesando sobre a adolescência de Sofia
- O processo de batismo de Sofia e as pressões enfrentadas para seguir os dogmas
- Primeiras dúvidas de Sofia sobre a rigidez e a justiça das práticas religiosas
- Discussões e confrontos iniciais com a família sobre questionamentos e incertezas
- A dúvida nasce
- Questionamentos sobre a fé
- A reação dos pais e a pressão familiar
- O encontro com Joaquim
- Exposição a outras crenças e conceitos espirituais
- A crescente insatisfação com a igreja das Testemunhas de Jeová
- O despertar para novos horizontes
- O encontro com Joaquim: a semente da mudança
- Os segredos ocultos: explorando outras tradições religiosas
- O despertar espiritual através da meditação e da oração pessoal
- O impacto na família e a crescente resistência à nova perspectiva de Sofia
- A difícil decisão de partir
- A confrontação com os pais
- A reação dos amigos dentro da congregação
- O medo do desconhecido e a busca por apoio
- Tomando a decisão e enfrentando as consequências
- Recomeço e descobertas
- Adaptação à nova vida
- Encontrando apoio e amizades fora da comunidade religiosa
- Explorando novas práticas espirituais
- Desenvolvendo um relacionamento pessoal e íntimo com Deus
- O papel da meditação e da introspecção na jornada de Sofia
- A busca por uma nova comunidade espiritual
- Vivenciando a fé de diversas formas e aprendendo a lidar com a diversidade religiosa
- Solidão e luta interior
- O vazio e a saudade da família
- Crises e incertezas na nova jornada espiritual
- Autodescoberta e enfrentamento dos próprios medos
- A busca pelo equilíbrio entre razão e espiritualidade
- Encontrando conforto na meditação e na conexão com a natureza
- Superando a solidão: fortalecendo os laços com a nova comunidade espiritual e com Deus
- A busca por um relacionamento verdadeiro
- Desafios e tentações no novo caminho espiritual
- Aprofundando-se na meditação e na oração pessoal
- A busca por aconselhamento e modelos espirituais
- Lidando com as cicatrizes e mágoas do passado religioso
- Sofia encontra comunhão no grupo de apoio
- A construção de uma fé autêntica e adaptada à sua realidade
- O anseio pela pureza do relacionamento com Deus
- O encontro inesperado e transformador
- O encontro inesperado e transformador
- A chegada repentina de Joaquim à cidade
- Encontro entre Sofia e Joaquim no café
- Conversa reveladora sobre fé e espiritualidade
- A influência de Joaquim na mudança da perspectiva de Sofia
- O início da transformação no relacionamento de Sofia com Deus
- Aprendendo a viver com fé e liberdade
- A nova vida de Sofia longe das Testemunhas de Jeová
- Práticas espirituais diversas e aprofundamento na fé
- Encontrando alegria e liberdade na conexão com Deus
- O equilíbrio entre tradições e a construção de uma espiritualidade pessoal
- A importância da tolerância e do respeito às diferenças religiosas
- Confrontando o passado
- Retorno inesperado à cidade natal
- Encontro com familiares e amigos das Testemunhas de Jeová
- Confronto com os pais sobre a decisão de deixar a organização
- A descoberta de mudanças na vida dos familiares e amigos
- Uma conversa reveladora com Madalena, sua mãe
- Sofia compartilha suas experiências e aprendizados com pessoas que ainda lutam com o fundamentalismo religioso
- A jornada de amor e redenção
- Redescobrindo a conexão com Deus
- Aprendendo a perdoar a si mesma e aos outros
- A força do amor para superar obstáculos
- Uma verdadeira comunidade espiritualmente unida e comprometida com a justiça social
Rompendo as Correntes Divinas: A Jornada de Libertação Espiritual de Sofia
Uma criação rígida
A voz de Sofia ecoava roucamente pelo salão do reino. Cantavam o Salmo 83. O ar parado do recinto estava impregnado com um cheiro forte de sabão amarelo e suor. A luz do sol da tarde, filtrada pela cortina de renda branca, desenhava um padrão intrincado de sombras no batistério vazio e na cortina mofada que escondia o pequeno balcão atrás dele. Sofia percebeu que estava cantando a melodia correta, mas suas palavras tremiam e hesitavam entre as notas. Estava perdida em pensamentos enquanto os olhos escuros de sua mãe se fixavam nela, suplicando.
"Sofia, minha filha, por amor à sua salvação eterna, é preciso se esforçar mais." Madalena murmurou baixinho, antes de voltar a cantar com uma voz controlada. Sofia suspirou internamente e procurou a página correta no seu livreto.
A reunião finalmente chegou ao fim. Sofia podia ouvir as cadeiras sendo arrastadas contra o chão de azulejo e o murmúrio das conversas e risadas abafadas. Levantou-se, ajeitou seu vestido floral de mangas compridas, teve a sensação de que todos olhavam para ela, a adolescente rebelde que estava condenada ao ostracismo. Lutou para ignorar o olhar incômodo de seu pai, que repousava sobre ela como um punho cerrado. Pedro Almeida estava notadamente irritado, e ela sabia por quê. Sofia estava hesitando, demorando demais para tomar a decisão mais importante de sua vida: ser batizada como uma Testemunha de Jeová e obediência eterna à organização.
Tinha sido uma semana difícil para Sofia, desde aquele dia na escola, quando havia assistido a uma apresentação do grupo de teatro. Viera faltando ao compromisso com o estudo bíblico, e seus pais a repreenderam em voz baixa na sala de jantar apertada. Anos de disciplina rígida e lealdade incansável começavam a criar fissuras, como a umidade que se insinuava pelas paredes, consumindo a harmonia da casa.
Sofia sentia o peso da responsabilidade, mas não podia - ou talvez não quisesse - responder às expectativas dos pais. "Ouvir-te-ei, ó Senhor", pensou, verificando se o livreto estava no bolso do avental. No entanto, por baixo da superfície lisa de sua fidelidade, havia uma corrente de medo e tristeza. Sentia-se perdida em um mar de regras, como uma criança afogada no dilúvio das palavras escritas no grande livro negro que seus pais faziam questão de abrir diariamente sobre a mesa, rito inesquecível do café da manhã.
Naquela noite, após a reunião, Sofia caminhou solitária pelas ruas da cidade, onde os postes de iluminação espalhavam fachos amarelados e sombras nas esquinas e becos. A cidade, com suas fachadas coloniais e calçamento irregular, convidava à nostalgia e à solidão. A adolescente deixou-se perder entre os vãos das ruas e o silêncio das pedras.
Foi quando viu uma figura sentada no banco em frente à igreja matriz, uma igreja na qual nunca ousou pôr o pé. Era um jovem de cabelos encaracolados e óculos redondos, mergulhado em um livro que segurava com um dedo comprido. Nervosa e hesitante, Sofia se aproximou e tocou seu ombro.
O rapaz levantou os olhos do livro e sorriu, exibindo dentes perfeitamente alinhados e brancos. "Não temos aula hoje", ele disse, com a naturalidade desprendida de alguém que conversa despreocupadamente em um café. "Você deve estar a meu procura por outra razão."
Sofia não sabia o que dizer ou que resposta esperava encontrar, pois o que a atraía ali era uma sensação inquietante, mas também libertadora. Com as mãos trêmulas, ela puxou o livreto e mostrou ao rapaz. "Eu gostaria de saber mais sobre outras crenças. Por favor, me ajude. Não aguento mais."
O rapaz sorriu, estendeu a mão em um gesto amigável e se apresentou: "Joaquim. Prazer em conhecê-la, Sofia." Ele fez uma pausa, como se ponderasse as palavras. "Claro, podemos conversar. Quem sabe haja um caminho mais amplo à sua frente do que essas páginas encadernadas."
Introdução à família de Sofia e à comunidade das Testemunhas de Jeová
A luz do sol se misturava com o ar amável da manhã e penetrava na casa de pedra que Madalena e Pedro haviam construído para abrigar sua família. Ela acordou com o canto dos pássaros saindo da árvore do quintal e, revirando-se na cama, observou seu marido já tenso pelo trabalho que viria naquele dia. Pedro, uma figura imponente e rígida, carregava o peso das obrigações familiares e espirituais de quem tinha crescido dentro da congregação das Testemunhas de Jeová.
Na cozinha, o filho caçula, Tiago, parecia imune ao amanhecer conforme deitava sobre a cadeira, mastigando lentamente um pedaço de pão. Esta cena de paz familiar durou pouco, entretanto, pois logo a casa foi preenchida pelos gemidos de Sofia, a filha adolescente, que se recusava a abandonar o sono e enfrentar a manhã que apontava.
"Sofia, levante-se", clamou Madalena com uma voz impaciente. "Você sabe que hoje é dia de estudo e seu pai já está se preparando".
"Ignorante menina", pensou a mãe, suas mãos cansadas movendo-se rapidamente sobre a panela de arroz e os legumes. "Se a menina seguisse a risca os princípios pelos quais fomos criados, não teríamos de enfrentar a angústia que reina esta casa."
Sofia se moveu vagarosamente, irritada pelo canto dos pássaros. A luz do sol entrava pela janela e brincava em seu cabelo cacheado. Ela deixou-se chegar à mesa, o que ocorreu com um estalo ressonante, o som agudo. Um olhar de reprovação veio de seu pai. Ele mal se importava com a dor que Sofia sentia ante o mundo que a rodeava, uma dor que crescia conforme as expectativas e pressões familiares se acumulavam.
Esta não era só mais uma casa onde se acreditava na doutrina das Testemunhas de Jeová. Aquela casa abrigava Pedro, que, além de ser marido e pai, era um ancião da congregação. Dos ombros de homens como ele repousavam o ânimo de dezenas de famílias, que ainda acreditavam na recompensa futura que viria a esta terra preenchida por seres caídos.
A vida familiar do casal era construída em torno de uma série de ações envolvendo a fé, incluindo estudos, evangelização e reuniões na congregação. Eram laços sólidos e inflexíveis àqueles que seguiam as regras e dogmas da religião, mas que se tornavam pesados e sufocantes quando desafiados ou questionados. Cada palavra pronunciada, cada ação tomada, estava impregnada de significado e pressão - dos filhos à esposa, e de Madalena a Pedro.
"Por que", perguntou-se Sofia, "o amor de Deus, de meus pais e de meus irmãos de fé se suspende por um fio tão frágil, pronto a ser rompido a cada desvio, ainda que pequeno?"
Madalena podia sentir a preocupação crescente em sua filha e sabia que os espinhos do pensamento humano estavam atravessando sua carne sensível. Com todo seu amor e preocupação, não restavam palavras que pudessem aplacar os conflitos que borbulhavam dentro desta mente jovem e controversa.
A manhã se contorceu em busca das respostas que não viriam. Sofia enxugava as lágrimas silenciosas, presa no turbilhão de emoções que a asfixiava. Pedro, enquanto se dirigia ao estudo bíblico, seu local sagrado de salvação, tinha plena noção de sua responsabilidade, mas também da crescente e inexorável distância entre ele e sua filha.
A mesa estava servida para um café da manhã modesto, acompanhado da leitura bíblica ritualística. A voz grave de Pedro ecoava pela casa, como as palavras de um padre perante sua congregação, mas mesmo agora Sofia sabia que as palavras que ontem a confortaram, hoje a envenenavam. Ela sentia os olhos impiedosos e julgadores de cada membro de sua família, e tremia com o peso de sua própria existência.
Foi neste instante, neste momento de catarse e convulsão interior, que Sofia decidiu: "Eu preciso responder à minha própria voz, pois há um chamado dentro de mim que transcende as escrituras e os líderes religiosos. Mas para isso, eu preciso quebrar os limites impostos por aqueles que amo e desafiar minha própria condição."
A dor naquele pensamento era física, farpas de vidro espetando seu coração. Mas esta dor, insuportável e assustadora como era, anunciava para Sofia o roteiro de sua jornada: a busca pela verdade e a luta pela emancipação de seu espírito.
A infância de Sofia e a iniciação na fé das Testemunhas de Jeová
A manhã nascia com um frescor de vida que exalava pelas árvores, pelas plantas e flores do quintal. A rua, com suas casas vitorianas e sua calçada de pedras do século passado, ressoava com o correr da água no regato que passava pelo fundo das propriedades erguidas dos dois lados do caminho. Era este o cenário no qual Sofia, uma menina de cachos castanhos e olhar penetrante, dava seus primeiros passos no caminho da vida e da fé.
Para Sofia, as memórias da infância eram apenas fragmentos nebulosos, resquícios de uma época de doces inocências. Lembro-me das mãos do pai, pequenos relâmpagos de ternura em meio aos fios encaracolados, e do olhar de doçura de Madalena, sua mãe, como se buscasse gravar a beleza da filha nos olhos.
Naquela época, não havia o peso dos preceitos e dogmas que pairavam sobre a vida familiar e espiritual dos Almeida anos depois. As lições e ora em torno da Bíblia eram gestos naturais e bondosos, embora começassem a traçar o esboço do desenho mais rígido que surgiria depois.
Naquelas menções, já recebia seus primeiros ensinamentos sobre o significado de ser Testemunha de Jeová. As palavras pareciam adequadas às orelhas de uma menina sonhadora, domesticando sua existência em um dossel sagrado que celebrava a criação, o amor e a promessa de um futuro eterno.
No entanto, enquanto Pedro Almeida lia serenamente os trechos escolhidos, os olhos da menina vagavam pelas frestas dos tijolos do quarto aconchegante e por onde brilhavam a luz do amanhecer. Lá fora, os pássaros pareciam contar sobre mundos e deuses desconhecidos, ignorados ou renegados por aqueles que, como seu pai, se proclamavam guardiões da verdade eterna. "Leste do oriente", diziam as aves, "com suas tempestades e mares revoltos, há outras escrituras, outras vozes que ecoam por corredores de templos e palácios, desfalecidos pela fúria do tempo e do homem".
A infância de Sofia e a iniciação nas práticas das Testemunhas de Jeová andavam de mãos dadas em um caminho de aprendizado e descoberta. Entre risadas e abraços, seus pais lhe ensinavam a importância do amor a Deus, da lealdade à congregação e da dedicação a um princípios menosunícípio que transcendia as convenções do mundo terreno.
Naqueles momentos, Sofia encontrava conforto e apoio na força de suas raízes familiares e religiosas. Enxergava em sua pequena e vibrante comunidade um porto seguro onde poderia crescer e prosperar sem temor ni caminho de seu Deus. Ainda não sentia as cordas invisíveis que, anos depois, a prenderiam em um cárcere de dogmas e expectativas.
Nas noites em que havia algum festejo na vizinhança, as crianças se reuniam para ouvir lendas e histórias que pouco se coadunavam com o mundo bíblico, mas que brilhavam com a mesma intensidade e palpavam o mesmo mistério. Sofia se sentia como uma embarcação desgarrada em um oceano de narrativas e possibilidades, lutando por desvendar a charada que era a própria vida.
"Dizem por aí", contou Paulo, um menino de cabelos encaracolados e olhar astuto, "que os deuses lá do Oriente são muitos, e cada um deles governa um pedaço das terras, dos mares e dos céus. Dizem também que eles descem à terra e compartilham com os mortais os segredos da prosperidade, da sabedoria e da alegria."
Experiências formativas na escola e interações com colegas fora da comunidade religiosa
Sofia continuou a crescer e a amadurecer tanto em seu corpo e mente quanto em sua fé, desenvolvendo a cada dia aquele olhar perscrutador que a distinguia das outras crianças de sua idade. Seus cabelos se enrolavam como mechas reluzentes de bronze em suas costas, e seus olhos mergulhavam no horizonte, como se buscassem iluminar os mistérios que aquelas águas sombrias ocultavam.
Em poucos meses, ela ultrapassou a altura tanto de suas irmãs mais velhas quanto de suas amigas da escola, conquistando com isso uma postura imponente que a tornava objeto de admiração e de inveja. O pescoço alongado e os ombros curvados, contudo, puxavam-na em direção à terra, como se a menina buscasse ali fundir-se com a matéria e as raízes de seu ser.
Sua vida na escola tinha seu quinhão de dificuldades e de desafios. A professora, uma mulher de meia-idade com um olhar perspicaz e uma boca que nunca se alargava em um sorriso, começou a perceber que Sofia era uma aluna única e que levava sua educação a sério. Ela achou que Sofia era uma menina inteligente, cheia de ideias e visões, mas que precisava de orientação e disciplina.
Foi assim que as aulas de sociologia chegaram às mãos de Sofia como um manjar dos deuses, vertendo dos lábios da professora palavras de sabedoria e de conhecimento há muito tempo esquecidos. Foram as primeiras aulas abordando religião comparada, tradições espirituais de variadas etnias e a história do pensamento humano em geral.
Sofia passou a conhecer outras tradições religiosas e como elas impactavam as sociedades ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, ela passou a encontrar colegas de fora de sua comunidade religiosa, crianças e adolescentes que pensavam e se comportavam de maneiras que a surpreendiam e a assustavam, mas que também iluminavam ainda mais as meandros de questionamentos e descobertas que haviam desabrochado em sua mente.
Aquelas conversas, tão casuais e inocentes a princípio, tinham o poder de solapar os alicerces mais básicos do mundo conhecido de Sofia. Foi assim que conheceu Lara e Renato, uma jovem e seu irmão mais velho, que acabariam por assumir, cada um a seu modo, um papel crucial na vida e na perdição da menina de olhos curiosos.
A princípio, Lara se aproximou de Sofia, apresentando-a a seu irmão e, com isso, ao mundo de ideias e de costumes alienígenas ao universo das Testemunhas de Jeová. Renato, um jovem esguio e de olhos negros, era estudante universitário e se dedicava a assuntos relacionados à filosofia, religião e história.
Durante as tardes que sucediam as aulas, Sofia e seus novos amigos se encontravam no café local, onde passavam horas discutindo sobre os mais variados temas. As conversas fluíam como um rio, correndo de um tópico a outro, e Sofia sentia uma sede insaciável pelos conhecimentos e opiniões compartilhadas naquele ambiente diverso e estimulante.
Em uma dessas tardes, enquanto saboreavam cada um seu copo de limonada gelada, Renato levantou uma questão intrigante:
- O que você acha sobre o livre-arbítrio, Sofia? Será que realmente temos poder sobre as escolhas que fazemos ou somos controlados por nossos preceitos e dogmas religiosos?
Sofia engoliu em seco, os olhos tentando escapar do olhar penetrante de seu amigo. Sentiu um peso em seus ombros conforme pensava na resposta, medindo as palavras com cautela.
- Acredito que temos liberdade em nossas escolhas, mas também acredito que essa liberdade é limitada pelas crenças que nos foram ensinadas desde a infância - respondeu Sofia, sua voz trêmula e insegura.
O silêncio incomodou o grupo, e Sofia se viu remoendo aquela conversa ao longo de muitos dias.
Foi no momento em que Lara, irresponsável e distraída, deixou escapar um sorriso diante da notícia de um acidente grave em outra cidade, que Sofia sentiu o peso do dilema que amadurecia em sua mente. Aquele riso, despreocupado e até mesmo cruel, soava como a confusão de mortalidade e insignificância que se instalava dentro dela.
As incertezas e questionamentos, recorrentemente acendidos e apagados ao longo do seu convívio com Lara e Renato, começaram a queimar com mais força dentro de Sofia. A chama do questionamento atingiu Sophia tão profundamente que ela passou a sentir a ardência das dúvidas como se fossem brasas vivas sob sua pele.
Ali estava ela, uma jovem em chamas, comendo-se e consumindo-se na busca pela verdade, o amor e a fé que tanto a sustentaram e a nutriram, mas que agora se tornavam opressores e insuficientes. Sofia sabia que, embora as respostas não estavam à sua vista, mas elas existiam e aguardavam por sua busca incessante e corajosa.
As regras e expectativas das Testemunhas de Jeová pesando sobre a adolescência de Sofia
Capítulo 4: De Bons Costumes e Lealdade
Sofia se sentou no fundo da sala, mãos inquietas dobrando a bainha do vestido azul fluido que lhe fora presenteado pelo pai na ocasião de seu aniversário de quatorze anos. O sol da tarde inundava o aposento através da janela aberta, banhando as cadeiras empilhadas, as estantes repletas de folhetos e, é claro, o púlpito ordenado em torno do qual se reuniam todos os sábados e domingos – tal como aquela noite, uma noite especial. Desenhou figuras abstratas no ar com o dedo, observando o bailado das partículas de poeira que suspendiam-se sob a luz dourada.
Luíse, sua irmã mais velha, apertou-lhe o ombro com um sorriso terno e um pouco sonolento. “Nervosa?”, perguntou em um sussurro.
Sofia balançou a cabeça, mas seus olhos continuavam cerrados e fugidios. “Não”, respondeu sem muito convencimento. “É só que... Todo mundo vai estar olhando para mim.”
Luíse riu levemente e deu um breve peteleco na ponta do nariz de Sofia. “É, uma vez a cada sete anos. Melhor se acostumar!”
“Sete anos?”, Sofia franziu o cenho e prendeu o olhar na irmã, por uma vez.
Luíse suspirou e corrigiu-se. “Bem, isso é o que eles dizem. Que é o tempo médio entre hoje e o batismo. Só não esqueça o que papai disse. Há muita coisa em jogo.”
Sofia engoliu a ansiedade e as palavras de apreensão, relegando-as a um canto de sua mente para que nao atrapalhasse aquele momento tão importante.
O salão estava se enchendo rapidamente à medida que as famílias chegavam, sorrindo, e cumprimentavam uns aos outros com abraços calorosos e desejo recíproco de paz. Alguns lançavam olhares interrogativos e expectantes à Sofia, que sustentava o sorriso polido e o ar de bonança, embora tímida.
As Testemunhas de Jeová eram conhecidas por serem muito rígidas com as regras e os costumes de sua prática religiosa, algo que Sofia aprendera desde a infância. Eram regras rígidas e bem definidas, e segui-las era mostraria lealdade à comunidade e, principalmente, a Deus. Por isso, aquela noite a atenção estava redobrada para a adolescente que estava prestes a completar quinze anos de idade.
A celebração "Estudo Bíblico de Família" seria realizada em sua homenagem e, para acrescentar ainda mais pressão a tal encontro, o ancião da congregação, Irmão Rafael, conduziria pessoalmente o estudo na casa dos Almeida - um docente de postura sólida e olhar penetrante.
O estudo começou e Sofia tentou prestar atenção ao soar suave e ritmado das palavras de Irmão Rafael, um homem experiente e com conhecimento profundo das escrituras. A passagem escolhida explorava os caminhos da lealdade e obediência à vontade de Jeová e da importância do batismo para estabelecer tal laço sagrado.
"É no momento do batismo que nos tornamos verdadeiros soldados de Jeová, prontos a enfrentar o mundo perverso e suas tentações", disse Irmão Rafael, seus olhos dançando diligentemente pela pequena plateia.
Madalena, mãe de Sofia, assentiu vigorosamente e adicionou: "Mas lembrem-se, meus filhos, a lealdade a Jeová é um compromisso diário. Devemos nos esforçar para aperfeiçoá-lo, retendo nossas línguas a fim de não disseminar fofoca e maledicência, vigiando nossos olhos para que não encarem desejos ilícitos, e protegendo nossos corações para que nossa fé permaneça inabalável diante das adversidades."
Com um intenso olhar, Luíse dirigiu a palavra à Sofia, que se encolheu ao perceber que agora estava no centro das atenções novamente.
"Sofia, minha querida irmã, o tempo do teu batismo se aproxima, e eu sei que seguirás com lealdade e diligência o caminho do nosso Deus, Jeová. Mas lembre-se que esse compromisso não é um fardo, e sim um presente de amor, graça e proteção. É um caminho de alegria e felicidade."
Lágrimas começaram a embaçar os olhos carinhosos de Luíse, e Sofia sentiu um nó na garganta, com ansiedade e orgulho borbulhando dentro dela. Conseguiu balbuciar um "Obrigada" trêmulo, e a sala inteira a encarava com sorrisos e um derramamento silencioso de amor aconchegante.
Um sorriso desabrochou lentamente no rosto de Sofia, sua alma começando a se acalmar com a compreensão do compromisso e dever que lhe era esperado. E, lá no fundo, uma voz baixa e inquieta começava a murmurar a pergunta que Sophia ainda não ousava formular: Será que este caminho, este dom delicado, este manto de regras e expectativas, é o único caminho possível para alcançar a verdadeira alegria e felicidade? Até onde iria a lealdade de Sofia às tradições e dogmas que a cercavam desde seu nascimento?
O processo de batismo de Sofia e as pressões enfrentadas para seguir os dogmas
Capítulo 3: O Batismo e a Cruzada pelo Dogma
O céu estava sobremaneira cinzento naquela manhã fatídica em que Sofia seria batizada nas águas geladas do pequeno lago no centro da cidade. As nuvens, pesadas e carregadas como a consciência da própria Sofia, vagavam incertas no horizonte, anunciando um temporal que logo derramaria sobre as cabeças dos fiéis indiferentes. Conduzida pelo braço de seu pai, a menina atravessou o alpendre de casa e seguiu em meio às inclinadas casas enfileiradas, com janelas e estreitos terraços de onde vizinhos saudavam com ar compadecido e prometiam um repasto caprichado para o farto retorno.
Sofia podia sentir o palpitar se seu coração bem onde o cinto apertado do vestido a acomodava. Era um vestido branco, como pediam os costumes, com laços e bordados sinuosos, feitos à mão, como só pérolas do mais intrincado gabarito poderiam enfeitar uma jovem virgem entre as Testemunhas de Jeová. E era bela sua indumentária, Sofia não o negava. Também conhecia não minorizá-la, embora pesasse em seus ombros o peso de uma vida e de práticas das quais sua alma, silenciosamente, começava a desejar se desvencilhar. No horizonte, o lago onde seria imergida jazia tranquilo e plácido como a mansidão dos anseios de seu povo.
Dominado por árvores seculares e centenárias, assim como a tradição que ali desembocaria, o lago refletia em sua superfície as sombras e os desvios que se alastravam no âmago de Sofia. A menina caminhava em direção ao precipício das águas, onde seu pai já se posicionava para acompanhar o batismo tão esperado.
O ritual teria início ao meio-dia em ponto, e algumas Testemunhas de Jeová já se aglomeravam em volta do ancião da congregação. Era Irmão Rafael quem conduziria o batismo, com olhos judiciosos e uma voz fortíssima diante da qual ninguém poderia se esconder em sua tradição. O vento alçou seu cabelo grisalho numa ilustração perfeita da tempestade iminente, mas o olhar profundo e sereno de Irmão Rafael inspirava confiança e devoção, apesar das trevas.
"Do meio das águas, eis que a luz resplandecerá!", bradou ele, chamando a atenção de todos os presentes. Apenas Sofia viu seu olhar a pousar nela por trás da máscara de autoridade e da expectativa dos fiéis. Pesava sobre Sofia não apenas a estima, mas também uma pressão silenciada, quase inaudível, como se ela fosse portadora das esperanças de toda uma geração e constituiria um baluarte aos olhos de Jeová e dos homens.
Era um sofrimento que apenas Sofia sabia carregar. Dava-lhe a energia para levantar a cabeça diante do olhar severo do ancião, oferecendo-lhe um sorriso que não era seu, mas que se adequava ao instante solene e repleto de ritual.
Debruçou-se sobre o precipício respeitável de águas escuríssimas, com a mão amparada pelo pai e o rosto erguido ao céu cinzento. Na iminência de ser imersa pelas águas, as palavras de Irmão Rafael ainda ecoavam em seus ouvidos.
"Da escuridão, trazei a redenção, o renascimento, a verdade!"
Submergindo sob o olhar orgulhoso e cheio de esperança de seu pai, Sofia sentiu o ar se esvair de seus pulmões, o mundo desvanecer no instante em que as águas frias lhe envolviam o corpo frágil. Por um momento, tal como a extinção dos olhos esternos e das expectativas, a adolescente sentiu-se livre de todas as amarras e os silêncios que lhe apertavam a humanidade.
No entanto, mal suas mãos encontraram-se abaixo da superfície, unindo-se num silencioso e desesperado pedido de liberdade, Sofia foi arrancada das profundezas gélidas. Voltou, então, sua cabeça, ainda ofegante, à família e à congregação, que aglomeravam-se para saudar a jovem que, aos olhos deles, havia renascido na fé.
Sentiu-se grata pelo afago e amor demonstrados pelos anônimos rostos que a cercavam. Agradeceu ao ancião e ao pai, suas mãos ainda trêmulas e os pés encharcados pela inquietação. Voltou, ainda, para casa sob o braço protetor de seu pai, ombro a ombro com a própria irmã, Luíse, que sorria levemente, porém não deixava de perceber a agitação se apossar da alma perturbada de Sofia.
À sombra das árvores centenárias, a adolescente começou sua lenta e silenciosa batalha. Uma batalha de questionamentos e confrontos que, em breve, viria a quebrar os alicerces do mundo que ela sempre conhecera. Até onde seguiriam os laços e fidelidades com um caminho tão duro e inflexível, escondidos sob o aparentemente sereno lago?
Primeiras dúvidas de Sofia sobre a rigidez e a justiça das práticas religiosas
Capítulo 5 - Reflexões à Luz do Crepúsculo
As pausas da tarde, escorreitando gloriosas pelo vidro embaçado da janela, esgueiravam-se como lâminas de d'ouro recortado, cintilante e vívido. Debruçada sobre o peitoril, com os delicados cotovelos marcando sua breve presença no velho reboco da parede, Sofia divagava por entre as nuvens rosadas do crepúsculo.
As camadas dolorosas das crisálidas quebradiças nuanciam os contornos de suas feições. O sutil espectral de âmbar, laranja, rosa e índigo, tecidos pelo artesanato celestial de um lápis que se esgota a cada tarde, compunha o aroma de verão que andava no ar há semanas.
Sofia sentia-se como se balançasse, sem rumo, nas beiradas de um abismo misterioso e sombrio. Era como se o infinito e o desconhecido convergissem em uma única consciência e pairassem sobre os alicerces do mundo que sempre conhecera - agora turvo e enevoado.
A dúvida era palpável, amargurada e espinhosa no ordinário enlevo de seus pensamentos habituais. Desde a noite de seu batismo, elas começaram a brotar - e cosecharam em sua mente as perguntas que durante longo tempo - talvez toda sua vida - quis calar.
Em boa parte das vezes, Madalena e Nico Almeida cumprimentavam a filha com auras de sorrisos e ternos gestos. Fora o sussurro escondido e o lampejo ocasional de preocupação, eles pareciam ignorar, ou respingar subestimação, sobre as batalhas que se agitavam no âmago de Sofia.
Mas não Luíse.
De mãos injuriadas pelo árduo trabalho no mercadinho da cidade, a irmã mais velha segurava a face de Sofia e lia como brilhantes hieróglifos o serviço que nelas se inscrevia.
- Algo te acomete, Sofia - ela murmurou, com um olhar penetrante. - Não estás compartilhando tudo comigo.
Sofia desviou a vista, fitando a luz decrescente que escorria pelo chão envernizado.
- Será que é sempre assim? - ela perguntou serenamente, mas com um timbre grave, quase desesperado, pinchando-se em sua voz - A vida é tudo o que devemos seguir? Todos nós somos criaturas tão parcas?
Luíse suspirou, afagando os cabelos da irmã.
- Não tenho todas as respostas, Sofia. Mas sei que o caminho para a fé é tortuoso e, às vezes, cobra um alto preço.
Ela soltou os cabelos da irmã e olhou em seus olhos, resoluta.
- Mas, se for verdadeiramente o caminho de Deus, dará a agulhada da compreensão, em última instância. Acredito... Há muita verdade no que aprendemos. Será que devemos questionar sempre tudo que nos é ensinado?
A menina de olhos marejados fitava a irmã, sem saber o que dizer, como se carregasse uma difícil constatação.
- Eu não sei, Luíse - gemeu Sofia, finalmente.
- Não sei. Mas se for o único caminho, é porquê Deus quis assim que fosse... E se for mesmo assim, talvez, quem sabe, eu realmente não possa mais tolerar.
A irmã mais velha abraçou Sofia apertado e sussurrou-lhe palavras de conforto, mesmo que soubesse que, no fim das contas, era um pressagio amargo.
Sofia encontrava-se nas encruzilhadas de sua vida espiritual, um mundo que começara a desmoronar e a se reconstruir, numa cambalhotă que nunca cessava até encontrar o sossego de sua paz.
Naquela tarde sombria, com as cores crespas do fim do dia e os rascunhos de incerteza a manchar a frágil aquarela de seu céu, Sofia recostou no colo de sua irmã, permitindo-se sonhar com um mundo diferente, livre da rigidez e da expectativa e repleto da inefável beleza da verdade.
Deixando fluir suas lágrimas furtivas pelo rosto corado, Sofia sentiu que, a partir daquele momento, começava a escrever o próprĺogo de uma batalha terrível - que só findaria na consumação do seu autoconhecimento interior, o antegozo de um divino banquete ao qual, a muito custo, ofereceria seu coração entorpecido pela incerteza e a graça repleta de dúvidas.
Discussões e confrontos iniciais com a família sobre questionamentos e incertezas
Capítulo 3: Fatalidade e tentação dos diálogos na vigília dos sonhos
A noite se erguia como um manto sombrio e impenetrável, devorando as frágeis intersecções da memória e do coração. Sofia não conseguia adormecer, submersa em um delírio de anseios e temores que a mantinha em incessante lucidez. A sombra espectral do relógio no canto da parede rasgava-lhe o coração, antecipando o tempo e o espaço que a separavam das decisões sobre as quais pendia o destino de seu corpo e de sua alma.
O calor úmido e opressivo da noite transformava seu leito em uma cama de espinhos, onde o sono se convertia em pesadelos e a paz, uma fugaz utopia. Sob o escrutínio de uma lua esquálida, ela buscava refúgio na penumbra que se instalava em seu coração, tremendo ao sabor das escolhas que estavam diante de si.
O silêncio, roçado pelo alvoroço imperceptível de uma brisa insone, inquietou-se com a súbita entrada de Luíse, irmã mais velha de Sofia. A jovem, de rosto lívido e olhos lacrimosos, dirigiu-se ao leito, buscava consolo naquela porção perdida no tempo e no espaço, onde temores e segredos permaneciam aprisionados ao lado da irremediável nossa humanidade.
"Sofia," sussurrou ela, um lamento entre os lábios trêmulos. "Não sei mais o que fazer."
A mulher mais jovem sentou-se, abrindo os braços e confiando-lhes toda carga de sofrimento e desilusão. Era uma tristeza que atravessava gerações, impregnando-se nos ossos e doída como chumbo derretido sob a carcaça imemorial das constelações.
"Conta-me, Luíse", pediu-lhe Sofia, com um gesto singelo e compassivo. "Por que desespera tanto?"
As palavras que a irmã mais velha soltou em desaliño eram como punhais de gelo, cortando as vestes de ilusões e esperança que ambas haviam forjado durante anos de renúncia e sacrifício. A confissão vertia-lhe do rosto como puro azeite derramado de uma ânfora de argila.
"Não tenho a fé que esperam de mim, minha irmã… a fé que nos disseram que seja inextinguível. Eu não sei… talvez Deus, em sua sabedoria e onipotência, tenha me concebido um coração imperfeito, incapaz de discernir o verdadeiro trigo do joio amaldiçoado."
Sofia apertou as mãos da irmã entre as suas, olhando profundamente no abismo do desespero e da autocensura que lhe emporcalhavam as entranhas.
"Escuta-me, Luíse. Todos nós somos imperfeitos e passamos por questionamentos e incertezas. É normal, é humano. Talvez", e aqui Sofia hesitou, sua própria voz assumindo um tom mais baixo e cauteloso. "Talvez este seja também o caminho para encontrarmos nossa verdadeira fé, nossa própria conexão com Deus."
Luíse levantou os olhos para Sofia, um vislumbre misterioso de esperança e veemência.
"E se for esse o caso, Sofia, então meu medo é ainda maior. O que se tornará de nós? Dos que amamos e veneramos como sacerdotes de nossa fé e guardiães de nossa comunidade? Que ocorrência terrível poderá abater os cimentos que nos mantêm erguidos perante o infinito e eterno poder divino?"
As palavras de Luíse tremulavam no flutuar de contrastes e penumbras, enquanto Sofia sentia o peso de suas dúvidas ainda não resolvidas. As irmãs ali, suspenso no abismo de incertezas e claridades que marcavam os traços de seus destinos, encontravam-se a meio passo do precipício da desolação e da insubmissão.
Alguns minutos se passaram. Um grito lá fora, mais um canto de uma ave noturna, abateu-se sobre as sombras dos sonhos, enquanto as duas mulheres se curavam diante da onerosidade de suas existências.
"Do escuro, Luíse, da escuridão do desconhecido e de nossos próprios pevertidos corações, nos chegará a clareza das esferas celestes e reconforto das mãos de Deus", murmurou Sofia, abraçando a irmã com a força de uma filha de Jó. "Acredito que encontraremos nosso caminho, mesmo que sejam escolhas extraordinários e até dolorosas. Não importa o que o destino nos imponha: somos sangue do mesmo sangue, e nada nos separará."
As palavras intrepidavam no vento gélido e traziam consigo um fragmento de esperança, que luzia tênue na noite cerrada e de coração obscurecida. Mas era uma chama que persistia, teimosa como uma inexpressável melodia, cantada por duzentos corações suspensos entre duas dimensões insondáveis e eternas.
Dentro do quarto escuro, onde cada arco de luar penetrava, pressagiando um inexorável amanhecer, Sofia e Luíse aos mares de penumbra e de grandes revelações humanas. Juntas enfrentaram a noite e as sombras esquivas dos medos e dúvidas, dançando entre as etéreas chamas de anseios e esperanças fadadas a tornar-se reais apenas quando a luz do sol finalmente irrompesse no firmamento e as erguessem por sobre os olhos de Deus e da eternidade.
A dúvida nasce
Capítulo 2 - A Dúvida Nasce
Era um dia quente quando de Silva saíra da casa que compartilhava com seus pais – Madalena e Nico – e seus irmãos mais novos e mais velhos, que aos montes se espraiavam pelos cantos daquele lar. Era na rua, no entanto, que seu coração melindroso buscava conforto quando a pressão do cotidiano de sua tribo religiosa fervilhava em sua alma.
A sombra do jambolanzeiro oferecia-lhe abrigo naqueles dias mégidos, e Sofia ajoelhava-se sobre a terra cansada, as mãos cruzadas e implorantes, e maldizia sua sorte. Sonhava com um dia que a desfizesse de sua dúvida, e sua fé, intacta, lhe fizesse seguir e enfrentar as adversidades da vida sem sobressaltos.
Foi uma tarde como aquela, com as gotas resistentes da chuva do outono resvalando pelos galhos da árvore, que a figura de Joaquim riscara-lhe a consciência em linha curta. Ali estava ele, de camisa xadrez e cabelos desmanchados pela ventania ocasional, a fitá-la com olhos tranquilos, com olhos que lhe perdiam o sentido do desconhecido. Nada mais parecia importar naquele instante em que Sofia o encarou, como se ele fosse um apóstolo de seu íntimo, a curar sua angústia.
Voltou a fitar as mãos. Lágrimas tremeluziam em seu olhar. As orações retumbavam em sua consciência e aos poucos se desencaixavam, como se não precisassem mais da fôrma que ela havia guardado a sete chaves desde sempre.
Joaquim deu um passo à frente. Por brincadeira do vento, uma folha solta deslizou suavemente por entre seus pés, trazendo-lhe ainda mais a certeza de que um fenômeno divino a advinha naquele momento. Que o Altíssimo, a quem Sofia havia clamado tantas vezes, decidira levar a ela a salvação que a santa palavra prometia.
"Ei," chamou Joaquim no riso discreto de seus lábios. "Lá em casa... Eu e minha mãe, a gente costuma olhar o céu e pensar em Deus como um amigo, como alguém que fica do nosso lado, sem precisar de muito. Você já pensou assim, Sofia?"
A pergunta a Cordilheira de dúvidas e receios, de incertezas e inquietações. Se os anjos fossem realidade em sua vida, eles, naquele exato momento, entoavam cânticos divinais acima deles, envoltos no calor abafado da tarde.
"O... amigo?" hesitou Sofia, a voz trêmula. "Bem... Eu ainda não pensei... Nisso... Eu acho..."
Joaquim sentou-se no chão molhado, sem qualquer preocupação quanto a sua aparência. Era um redemoinho de luz e vontade que a conduzia, algo que ameaçava invadir a sentença que havia traçado para sua vida e apagar o rancor de suas desilusões.
"Às vezes, Sofia, a gente só precisa lembrar que a divindade não se restringe ao que a gente está acostumado. Ela mora em cada pedacinho de estrela que pisca no céu e dentro do coração de cada um de nós." Ele olhou em seus olhos e, num golpe de mãos pueril, enxugou-lhe uma lágrima solitária que rolava pela face.
Sofia escutava com fascínio, as palavras de Joaquim criando ondas de renovação em sua alma antes fatigada. Em seu semblante, uma máscara de serenidade e esperança que, em toda sua vida, nunca ousara colocar. Ela sentia a respiração descompassada e a terra arder em seu ventre, a prenunciar uma emoção há séculos adormecida.
"Por que não tentamos algo? Uma oração... Diferente," sugeriu Joaquim, e antes que Sofia pudesse entendê-lo, ele intercalou as mãos com as dela e elevou o olhar ao céu invisível por entre as folhas do jambolanzeiro.
Naquele instante, o mundo contemporâneo de Sofia fragmentara-se no maior espetáculo que o universo poderia lhe mostrar. E nesse exato momento, a dúvida sacramentava-se em seu coração como um decreto divino, a tatuagem que mudaria para sempre sua visão de Deus e do mundo.
Fora como um sinal que a abnegara, um sinal que lhe retiraria seu próprio chão e lhe propiciaria um voo em direção à vida que jamais pudera viver. E nessa descoberta, a esperança brotara como pérola fina em concha tortuosa, esquecida e desolada nas águas profundas do mar infinito.
Questionamentos sobre a fé
Capítulo 3: O embate das sombras: réquiems do crente desertor
O embate das sombras emergia da dor abrasadora que muralhava o peito de Sofia, soterrando-lhe a angústia e a desesperança em um abenedeiro de sermões e proclamas, cujo jugo se assentaría como mós em um coração fadado a percorrer os caminhos incertos e solitários da negação e do arrependimento.
Submersa em um silêncio feito das vozes de mil anjos caídos, Sofia vertia as dúvidas de sua fé como uma cascata líquida que bebia do hiato fantasmagórico e da penumbra sinistra da incompreensão e do temor. Quem era que se alicerçava no degrau supremo do bem e da verdade, a senhora e senhor de todas as balanças, cujo pulsar de amor e obediência se convertera em águas insofridas de desespero e repugnância?
A resposta – ou a ausência dela – martelava em seu espírito como asas de um sonho esfacelado, cujos fragmentos, trincado como uma mão de porcelana, besteliam-se no pó das emoções e das feridas arqueológicas que paralisavam os passos e os temores de seu ser. Precisava encontrar caminho novo e luz; precisava cortar – pelo derradeiro e sacrificial golpe – os fios ancestrais do padecimento e do fluxo eterno que orbitavam em torno do vazio que se instalava em seu coração e em sua alma.
“Os questionamentos! Eles não me deixam repousar, não me deixam entregá-lo à crença e à fé cega que se presume ser a chave para a eternidade e para as mãos de Deus”, confessou Sofia, estremecendo com o peso de sua desolação e a lâmina que atravessava-lhe o âmago de sua existência. “Não sei mais quem sou; não sei mais em que lado do céu e das esferas celestes devo me colocar para não profanar meus passos e minhas orações.”
Ao seu lado, no corredor silencioso e sombrio da casa onde sangravam as heranças e as promessas de tempos imemoriais, a figura deailada de Tânia emergia como um anjo de luz e coragem, e sem palavras, estendendo-lhe a mão e tremendo-lhe o abraço que se acrisolava no coração de Sofia.
Minutos agonizantes lançaram-se no oceano do tempo e do enlace de duas almas perdidas no âmbito de contrastes e penumbras viscerais. Sentadas à beira de um mundo débil e etéreo, Sofia e Tânia uniam-se como ampulhetas fundidas a fogo e cinzas, aspirando o puro e derradeiro abraço que as altas luminárias ainda lhes negavam e subtraíam.
“Sofia, querida irmã… Tu sabes da luta que batalhei quando o abismo da negação engoliu a beira da minha fé e me lançou para os domínios desconhecidos de sermões e deus estranhos. Pois eu… eu os aceitei. Sacudi a poeira, afoguei as estrelas, abracei o futuro e abri mão da mão piedosa do amor infinito. Me comovingo dia de tua angústia e de tua dúvida, mas também te instigoo a vislumbrar a possibilidade de uma existência amalgamada de verdades múltiplas e infindas.”
Os olhos de Tânia tremeluzesyam como candelabros celestes no cerramento agonizante do crepúsculo, edificando-se como labaredas que trespassavam as cortinas da incerteza e das mágoas esquecidas na margem do tempo e das tormentas humanas. Era um olhar que Sofia jamais havia atentado anteriormente, e fascinada com o brilho misterioso e aquático de sua própria sede de sabedoria, ela tragou o balsamo desses olhos, submergindo-se na fonte inesgotável de seus sonhos e de suas esperanças.
Respirar era como engolir néctar e apunhalar o peito ao mesmo instante. A vida, essa eterna matrenka onde escondiam-se corações e lágrimas de diferentes tamanhos e significância, desmoronava e renascia em seus olhos e em sua carne, como semente plantada pela mão habilidosa do criador e do guerreiro cósmico, senhor das dimensões celestes e terrenas, nas quais mergulham todos os seres e todos os gestos que bailavam entre o bem e o mal, a esperança e o inferno pessoal de cada alma atormentada.
A reação dos pais e a pressão familiar
Capítulo 5 - A Intervenção Divina e o Canto das Sombras
Dentro da pequena paróquia, o coro das Testemunhas de Jeová reverberava em harmonia pelo teto abobadado, inundando o ambiente de cânticos e orações que transportavam a chama da promessa divina aos corações dos fiéis. Sofia encarava a madeira envernizada do banco da frente, sua mente repleta de questionamentos que a instigavam e torturavam incessantemente.
Um vazio disforme residia em seu peito, engolindo a fé que ela tinha nos princípios e dogmas que durante tantos anos haviam governado seu pensamento. O olhar oculto de seu pai, Nico, pousava sobre o rosto angustiado de sua filha com a amargura daqueles que não conseguem compreender a tempestade que arrasta o próprio sangue a se afastar das águas familiares.
Madalena, sua mãe, em uma perfeita metáfora à sua fidelidade às Testemunhas de Jeová, amarrava com afinco aquele laço invisível que mantinha viva a força da crença nas boas novas do Altíssimo. Para ela, aquele laço amorenava sua filha no caminho onipotente da fé, um vínculo que dificilmente se romperia no silêncio doméstico daquela casa tão cheia de corações aflitos.
Após o término do coro, a congregação se acomodava em seus lugares, enquanto o pastor se preparava para iniciar a pregação da noite. Foi então que o olho ligeiro de Sofia começou a percorrer as linhas e gestos familiares daquele templo, como se quisesse encontrar uma resposta, uma chave que a salvaria de cair em tentação.
Interpretando a aflição de Sofia como um sinal de que ela necessitava de uma intervenção divina urgentemente, Madalena buscou a atenção do pastor e lhe entregou uma carta, na qual rogava que ele pudesse, com as palavras santas do Altíssimo, salvar sua filha de se perder nas trevas perigosas da incredulidade e da desconfiança.
Sofia, percebendo que cada palavra proferida pelo pastor se tornava um dardo em seu coração - mirado no risco que ela e outras almas atribuladas corriam - começou a tremer, sentindo-se aprisionada pelos muros daquele lugar que, ao mesmo tempo, lhe ofertaram tanto consolo e sentimentos de opressão.
- Sofia - chamou, hesitante, seu pai, ao final da pregação. Seu olhar sombrio e acuador derramava sobre ela a pressão do dever e da obediência, implorando para que ela reconsiderasse o destino de suas dúvidas e aflições.
- Meu pai, eu... - começou a murmurar, as palavras amordaçadas na garganta castigada pelo medo e pela incerteza - Quem sou eu para questionar a Vontade de Deus? - Sofia ousava desabafar, seus olhos incrédulos procurando, talvez, um rigoroso julgamento que colocaria fim a toda aquela tortuosa caminhada pela inexistência do divino.
- Quem somos nós - retornou, piedoso, Nico - Não somos nada senão filhos de Deus, criaturas frágeis e desorientadas que necessitam da graça Dele para sobreviver neste mundo de trevas.
O coração de Sofia rachava-se como um tronco seco, atingido em cheio pelo raio divino. As lágrimas brotavam incontroláveis de seus olhos, incapazes de conter a tormenta que se desenrolava em seu ser.
Olhando para sua mãe, implorou: - A senhora nunca... Nunca sentiu a solidão de estar padecendo no silêncio da dúvida, consciente de que suas perguntas feriam o Sagrado Convênio do Senhor?
A mágoa se imiscuía nas linhas suaves de Madalena, que se projetava sobre a filha em um abraço que agora mal se assemelhava àquele caloroso conforto ao qual se dedicara tantas noites úmidas e penumbrosas. Sua voz vacilava como a chama fragilizada do círio da procissão, ameaçada pelas correntes de ar que esgueiravam-se pelas frestas das portas e das janelas da igreja.
- Sinto tua provação, minha filha, sinto tua dor como também a minha. Mas é a nossa fé que nos salva no momento em que mais precisamos, é ela que eleva nosso espírito e nossos olhos para o divino e para o esplendor que a Eternidade nos oferece.
Os olhos de Sofia, inundados de mágoa e melancolia, encaravam os pais como que buscando um fio de certeza e segurança onde pudesse ancorar seu desespero e, ainda assim, rasgavam-se no alçapão das incertezas, implorando por uma esperança - um feixe de luz - que permitisse à sua alma intuir a beleza única de uma fé sincera, livre de preceitos e dogmas rigorosos e letais.
Era a hora da partida, Sofia sabia.
Era o último rastro da esperança perdido entre a névoa de seu ser.
Era a dor ancestral que se fazia ponte entre a agonia da descrença e a redenção prometida pelo amor Dele, tão presente e tão tênue em sua vida, tecendo finos fios de ouro e prata que, a cada sopro, se rompiam e se finavam.
A reação de seus pais açoitava-a mais que as palavras amargas, as pressões tangíveis, anunciando o fim de sua união e do abrigo familiar. Era agora que Sofia teria que enfrentar o desconhecido e dar seu salto no vazio.
O encontro com Joaquim
Tarde da noite, os céus velados pareciam sussurrar uma melodia de sombras e passagens de vento que se alongavam e roçavam pelas esquinas e vielas da cidade, como um farfalhar de seda e asas. Perdida nas brumas secretas de seu desassossego, Sofia vagava como um espectro na beira do silêncio e do tormento, buscando algum oásis, algum refúgio nos confins da escuridão e da solidão da madrugada.
Seus passos incertos a levavam pelos caminhos habituais, que já tanta vezes havia percorrido em busca de um sinal ou de uma voz que pudesse conter o furor de sua desesperança e da fé minguante em sua carne. Aquela noite, nublada e entrecortada por raios de luar que serpenteavam por entre as frestas das nuvens, parecia vibrar ao encontro de sua inquietação, como se Sofia conseguisse, por um momento brevíssimo e fugaz, tocar o abismo que se afundava em seu peito.
Sentada à beira da praça adormecida com as flores e os solfejos silenciados pela escuridão, Sofia permitia que a noite a envolvesse e acariciasse as teias cintilantes de sua angústia e desassossego. No entanto, em meio à penumbra e às vozes de sombras que cantarolavam como chamas nostálgicas e perdidas, um vulto surgiu como uma aparição, caminhando em direção à jovem imersa em suas peregrinações interiores.
Como um fundido eclipse, a sombra desvelou-se aos olhos de Sofia como Joaquim, um desconhecido enigmático e encantador que, sem perceber ou compreender o poder de sua presença, atingiu a alma atribulada da jovem com um vendaval de esperança e silêncio.
- Perdoe-me, estava caminhando por aqui e pensei que já estava na hora de voltar para casa, mas me deparei com você e... achei que talvez você quisesse conversar - disse Joaquim em um tom suave e gentil.
Qualquer desconfiança ou barreira que poderia encastelar o coração de Sofia já não se firmara e, desprovida de forças ou de algemas, ela se abandonou ao sorriso de Joaquim e murmurou a verdade que tentava, a todo custo, abafar às portas de sua alma e de sua carne.
- Há algo que corrói minhas entranhas e que parece uma língua de fogo esculpindo em minha pele as letras de uma história que jamais escrevi e jamais pensei em viver - confessou Sofia em uma rajada de vento e vertigem. - Como posso manter minha fé e minha dedicação aos mandamentos e aos dogmas se todo o meu ser grita e se rebela contra a pressão e a imposição de caminhos e escolhas que não estão alinhados com meu âmago?
- A fé é o ponto de encontro dos desejos e dos anseios que se encontram no campo indistinto do consciente e do inconsciente - respondeu Joaquim, como um eco que respingava dos lábios e se perdia na fronteira do sagrado e do profano. - Somente através do cultivo de um relacionamento pessoal e íntimo com o divino é que podemos verdadeiramente nos encontrar na plenitude de nossas convicções e de nossa confiança no desconhecido e nas mãos do Criador.
Emboladas nas palavras de Joaquim, Sofia sentia-se como se navegasse em um rio de luz e poesia; era um chamado ao despertar e um nascimento às beiradas do amanhecer e do resgate de sua alma, em águas profundas e enigmáticas. Decidiu-se, então, a mergulhar de corpo e alma naquele abismo desconhecido e arriscar-se na possibilidade de uma nova fé e uma libertação da marca sufocante do dogma e das sombras do passado.
- Como posso encontrar esse relacionamento com o divino? Como posso, sem renegar às minhas origens e aos laços que me prendem ao amor e à memória, buscar a redenção e a verdade que vêm somente das águas inesgotáveis e imutáveis do Criador e do ser infinito que coloca minh'alma na palma de sua mão e sopra-me em direção às esferas celestiais?
- Sabedoria e humildade - sussurrou Joaquim, em uma voz que parecia emergir das profundezas de um oceano primordial e ancestral. - O aprendizado só pode ser completo e transformador se estivermos dispostos a aceitar que o conhecimento e a compreensão vêm através da conexão com outras mentes e almas e da partilha e comunhão das ideias e das emoções que nos moldam e nos conduzem para o comum denominação entre todos os seres vivos.
- E como alcanço isso? - inquiriu Sofia, acometida de um fogo e de um desejo que arrebatava-lhe o coração e a mente.
- A jornada é árdua e tortuosa, porém, o destino é um oásis de luz e paz - respondeu Joaquim, os olhos fixos no rosto fulgurante e abençoado de Sofia. - Vamos, juntos, em busca da verdade e da libertação que nos aguarda como um pássaro sobrevoando nossos horizontes e as encruzilhadas de nossas vidas.
Exposição a outras crenças e conceitos espirituais
Sentada no café do centro da cidade, Sofia observava os passantes e assomava-se à janela da alma humana, sondando os mistérios que se prendiam aos corações e às mentes daquela multidão anônima. Ao redor, flutuavam conversas e risos que pareciam banhados em melancolia e em esperança, entrelaçando-se em um jogo inesgotável de emoções e disputas que atraíam e repeliam como um magnetismo.
Em meio às sereias e serpentes das vozes que se levantavam e caíam, Sofia recolhia, em sua concha transbordante, ecos e lampejos de outras crenças e pensamentos espirituais, como se percorresse, como um peregrino, as sendas e os labirintos de outras linhagens e de outras fontes de sabedoria e consolo.
- A meditação, Sofia - explicava-lhe Pedro, um ex-Testemunha de Jeová que havia se aventurado pelos caminhos incertos e tempestuosos da independência religiosa - é muito mais do que acalmar a mente ou silenciá-la: é uma porta aberta ao desconhecido, uma janela que se debruça sobre abismos paralisantes e libertadores, onde se despedaça o fardo de nossas angústias e de nossos temores.
Sofia ouvia, fascinada e ao mesmo tempo amedrontada, as palavras de Pedro, consciente de que aquele era apenas um pequeno pedaço de conhecimento que pairava como uma estrela distante nas constelações de mil outros ensinamentos e práticas espirituais. Mal ouvira falar de outras religiões que não sua criação, e agora uma porta se abrira diante dela, dando visão às várias linhas de pensamento existentes no mundo.
Sentindo-se ainda mais envolvida na conversa, olhou fixamente para Pedro, inquirindo: - E como posso conciliar essa prática de meditação com a minha criação? Afinal, é algo completamente novo para mim.
Pedro sorriu condescendente: - Minha querida, a natureza da espiritualidade é, em sua essência, uma busca pelo equilíbrio e pela harmonia; é um tecido tênue e vibrante que une as manifestações visíveis e invisíveis do ser e do universo. Se permita explorar e absorver aqueles ensinamentos que respeitam e nutrem sua verdadeira natureza, independentemente do dogma ou da tradição a que pertencem.
Enquanto conversavam, um vento suave levantava-se e soprava na direção de Sofia a correnteza de um rio de sabedoria e de profecias que se estendiam, atrevidas e ousadas, por entre as barreiras e as muralhas erigidas pelo medo e pela repressão que a tinham sufocado durante tanto tempo. Sentia-se prestes a adentrar um mundo vasto e inexplorado, repleto de possibilidades e revelações.
Foi nesse momento que Tânia, companheira de Pedro e conversa recente a uma fé mais aberta e plural, juntou-se a eles naquela mesa que abrigava conhecimentos e desejos intimamente relacionados com os redemoinhos e os vulcões de suas vidas. Com gestos sutis e pupilas intensamente límpidas, Tânia revelou a Sofia a beleza e a força da espiritualidade que se expressavam na arte, na música e na literatura, e que construíam caminhos e pontes ludibrando as fronteiras impostas pelos dogmas e pelos princípios rígidos.
- Você já ouviu falar das práticas místicas do sufismo? - perguntou Tânia à Sofia, em um tom quase sibilante, como se estivesse dividindo com ela um segredo longínquo. - É uma tradição que utiliza a dança, o êxtase e a contemplação para se aproximar do divino e fundir-se ao Criador, deixando-se dissolver nas águas celestiais e no espelho das estrelas, transcendendo as aparências e as limitações do ego e do tempo.
As palavras de Tânia ecoavam como melodias desconhecidas na alma de Sofia, e nascia-lhe um impulso de explorar mais a fundo a liberdade de pensamentos e práticas religiosas. Embora ansiosa por se aventurar pelos reinos invisíveis e soberbos das tradições e dos arcanos espirituais, Sofia não conseguia evitar uma sensação persistente de que estava, de alguma forma, traindo as expectativas e os preceitos de sua formação e de seus pais.
Enquanto envolveu-se naqueles conceitos e ideias expostas por seus amigos, sua mente embaralhava, trançando o passado e o presente como fios entrelaçados de um tapete de memórias dolorosas e desejos mal resolvidos. Contraporem-se às Testemunhas de Jeová envolviam-lhe num imenso amálgama de solidão e incredulidade, e ainda assim, sabia de toda necessidade de percorrer esse caminho de sombras e esperança.
A crescente insatisfação com a igreja das Testemunhas de Jeová
A cidade, com suas ruelas murmurantes e sombras galopantes, dormia e sonhava emaranhada nos véus e nos laços embriagantes da noite. Sofia, porém, caminhava inquieta, revolvendo no peito a insatisfação e a angústia que reverberavam como trovões e raios em um céu de tormenta e profecias insondáveis.
Sentia-se como se estivesse voando, atravessando um abismo azul-escuro, mas repleto de possibilidades. Fora-se o tempo em que participava do culto com a família na igreja das Testemunhas de Jeová. Crescera em braços tantas vezes carinhosos e vigilantes das leis que regiam cada passo e cada sopro de ar em sua casa e comunidade.
Agora, encurralada pela dúvida e pela evolução que se contorcia dentro de si como uma cobra onisciente e encantadora, Sofia não sentia mais o amparo providencial e inesgotável do Deus que, outrora, escutava e respondia prontamente aos clamores de seu coração juvenil e devoto.
Caminhava pelas ruas estreitas e ensimesmadas, o pensamento a afligir-lhe a calma e a saúde outrora robustas, quando um som familiar, como um raio afiado rasgando a noite, e uma voz conhecida chegaram até ela, flutuando através da névoa e das estrelas tênues e agitadas pela ventania desenfreada de suas emoções.
- Sofia! - chamava Madalena, sua mãe, em um tom que mesclava prece, acusação e arrepio. - Esconda-se, filha, encolha-se atrás das flores e dessa estátua do Apóstolo, pois, posso dizer-lhe, seu pai e o irmão Tomás estão vindo e, se perceberem que anda vagando feito um fantasma, atormentada e sedenta por um remédio e uma verdade que lhes suplantem as dores e os martírios do ventre materno, virão, sem misericórdia e com a ira destruidora do juízo vindouro, e levar-te-ão de volta para o redil e para o abrigo das árvores e das palavras que jurei seguir e professar.
Já não havia mais tempo para hesitar, para buscar um vislumbre de paz, de compreensão e de consolo. Sofia apressou-se em acatar a ordem angustiada de sua mãe e se amparou, envolta em medo e em rancor, na fria e sombria estátua de um marcado pelo chumbo e pelo canto desesperançoso dos inocentes. Madalena, entretanto, pôs-se de pé, com a dor e com a pálida promessa de uma redenção futura a rugirem em suas mãos e veias, enquanto aguardava o pai e o irmão aparecerem e inquiri-los sobre o paradeiro e a presença carcomida da filha que jurava entender e proteger, como um anjo guardião e uma luz partilhada pela eternidade e pelos mistérios da carne e da prosa celestiais.
"Sofia, meu anjo e minha espinha cravada no solo e no coração dessa vida terrena, como posso continuar a te amar e a clamar por tua salvação, quando a única chama que te consola e abrasa é a das dúvidas e das inquietações que te afastam da fé e da devoção? Se pudesses entender e compreender a chama que ardevejavam em minha mente e em minha voz, talvez encontrasses refúgio em minhas palavras e em meu amor evanescente de mãe e crente ferrenha."
Entrementes, uma voz abafada, como uma chorosa canção tímida e seguidas vezes cantigonadas pelos ventos, tremulou aos ouvidos de Sofia e a arrastou novamente aos abismos e às pontes que a separavam das luzes e das águas do redil que, dia após dia, consumia sua devoção e sua juventude.
- Madalena - inquiriu o pai, o rosto banhado em sal e sombras - onde foi que te perdeste, encerrando em teu peito a fulgente e cegante luz da verdade e chafurdando, como um navegante perdido e amaldiçoado, pelas correntes e orvalhadas das crenças e dos murmúrios que te rodeavam e te ameaçavam?
Não mais pôde, porém, continuar com sua prece e seu lamento, pois, naquele instante, a voz e a figura imponente do irmão Tomás brotaram da noite feito milagre e punição ao mesmo tempo, ferindo e consolando as almas atormentadas de Sofia e de sua mãe. Com uma palavra, com um gesto, Tomás desvencilhou-se da culpa e da desesperança que se alojavam em suas mãos e em seu coração, e postou-se como um sacerdote impoluto e iluminado em frente à Madalena, clamando por misericórdia e pela redenção da filha que se perdia e desvanecia, como um raio de sol diante do crepúsculo.
Sofia, abrigada aos pés da estátua que parecia estender-lhe a mão e o coração, ouvia com pesar e com um nó na garganta as palavras que derramavam-se como bálsamo e ferida, tentando ao mesmo tempo, desapegar-se e encontrar-se diante do abismo que abria-se em seus olhos e em suas iras.
Ali, na penumbra e na solidão, sentia a crescente insatisfação com a igreja das Testemunhas de Jeová como uma corrente que não mais poderia conter, e jurou a si mesma que iria buscar a verdade e a libertação que a chamavam como um farol nas trevas e em suas insônias.
Com renovação, coragem e, sobretudo, desejo de superação, Sofia tolheu o receio e as amarras e ergueu-se, feito uma Fênix renascida, pronta para enfrentar e descobrir o mistério que se dissimulava através do vértice de sua angústia e de sua fé minguante e revolta.
O despertar para novos horizontes
Depois de ler alguns livros sobre misticismo, poesia e línguas antigas, Sofia sentia como se estivesse expelindo o ar de um mundo submerso e desconhecido. Aquele universo religioso parecia uma terra de almas exóticas e encantadoras, habitado por sereias e anjos alados, druidas e videntes, que segredavam nas profundezas da consciência e da memória humana.
Na semana seguinte, convidada por Joaquim e contrariando os conselhos e advertências de sua mãe, Sofia aceitou assistir a uma palestra em um centro espírita a poucas quadras de sua casa. O salão, simples porém acolhedor, estava iluminado por velas e repleto de pessoas que, como ela, procuravam conforto e alento em seu peregrinar espiritual.
- Você vê, Sofia - explicava Joaquim, com seu olhar gentil e penetrante - existem verdades e peregrinações que ecoam e se ramificam por milenares tradições, desafiando e libertando os homens e mulheres, como nós, que se sentem aprisionados e amordaçados pelas normas e doutrinas compulsórias e inflexíveis.
Enquanto Joaquim falava, a palestrante, dona Conceição, uma mulher de rosto enrado e sereno, prosseguia em seu discurso, tecendo como uma teia de aranha os caminhos e as sendas de uma tradição que rejeitava o maniqueísmo e o materialismo como visões restritivas e degradantes da profundeza e do esplendor das relações humanas e divinas.
Revoada e enlevada por uma onda de êxtase e de encantamento, Sofia já não se lembrava de quais palavras dona Conceição utilizava para expressar suas convicções e suas revelações; todavia, sentia que estava prestes a despertar para um horizonte novo e vasto, onde vislumbraria uma fé e uma voz autênticas e vibrantes.
Ali, diante das janelas e das velas do salão, enquanto ouvia, com o coração palpitante, a palestra de dona Conceição, Sofia subitamente compreendeu e aceitou que, por mais que amasse sua mãe, Madalena, não poderia, para sempre, silenciar e subjugar os anseios e as dúvidas que lhe corroíam o peito e lhe sufocavam, como uma forca feita de ferro e de labaredas.
Naquele momento, era como se Sofia estivesse caminhando, na penumbra de uma selva desconhecida, rumo a um rio caudaloso, onde, afinal, lançaria, sem medo nem arrependimento, as cinzas e as lágrimas dos anos de angústia e de revolta que a tinham atormentado no limiar do desespero e da redenção.
Com os olhos magoada e trêmula, Sofia encarou Joaquim e, no balbucio e na hesitação que lhe nasciam dos lábios, pronunciou as palavras fatídicas e inesquecíveis que mudariam, para sempre, o curso de seu destino e de seu coração:
- Joaquim, eu... eu não aguento mais, eu... preciso voltar.
Joaquim, percebendo o turbilhão de emoções que envolvia Sofia, segurou suas mãos com ternura e disse em tom confortante:
- O caminho da transformação é doloroso, Sofia. Mas o resultado vale qualquer sacrifício. Sei que a angústia e o medo são grandes neste momento, mas permita-se descobrir e vivenciar o verdadeiro significado da fé, longe das regras e rigidez de sua criação. Você descobrirá como sua vida se ilumina e se liberta das amarras do passado.
Abraçando Joaquim com força e gratidão inexprimíveis, Sofia soluçou, chorando as lágrimas de dor e esperança que se acumularam por tantos anos e que agora, como um dilúvio, se lançavam ao encontro das profundezas e dos abismos de uma nova e insondável jornada espiritual.
Aquele era o despertar para novos horizontes, o início de uma odisséia que exigiria dela coragem e determinação além de tudo que já havia enfrentado, mas que, no final, lhe mostraria o verdadeiro significado e a plenitude da fé e da conexão com o divino.
O encontro com Joaquim: a semente da mudança
Capítulo 3: O encontro com Joaquim - A semente da mudança
O furor das emoções e das tormentas, que cedo ou tarde haveria de consumir e devastar as almas de Sofia e seus pais, anunciava-se premente e inquietador na textura cerúlea e tempestuosa do céu, na hesitação misteriosa e extrema das árvores e dos pássaros confinados aos regatos e aos santuários da cidadezinha adormecida e colonizada pelas vozes e pelos clamores das Testemunhas de Jeová e das igrejas neopentecostais.
Sofia, cujos olhos fulguravam com o brilho e a combustão do desejo, do medo e da insatisfação que lhe rasgavam o peito e ameaçavam sepultá-la viva entre as entranhas e os gritos roucos e amargos das inúmeras vidas e fés que se digladiavam em seu coração, permitiu-se, pela primeira vez desde que aprendera o gosto do desespero e do vazio, ir além, em busca de respostas, de remédios e de um consolo que a arrebatasse da fogueira e da fragilidade em que se encontrava aprisionada.
Perambulando pelos becos e pelas vielas úmidas e carcomidas pela névoa e pelas trevas, discutindo, inefável e insaciável, com a noite e com os fantasmas que lhe debruçavam sobre a angústia e o ânimo, enveredou-se por um caminho desconhecido e inexplorado que, feito curvas de rio em meio às montanhas, a levou ao encontro de um oásis, de uma terra prometida e profetizada por uma voz calma e onívora, feita de néctar e de tormento infinitos.
Ali estava esta voz, matéria humana e de mel, vestiu-se em uma figura de intenso e abismal magnetismo, ocupando a floreira em frente à biblioteca municipal com fervor e regozijo, devorando com sofreguidão e êxtase as páginas e os contornos das belezas e das verdades que se descortinavam feito um caudaloso rio de possibilidades e esplendeurs diante de seus olhos.
Era Joaquim, jovem imponente e sereno, cuja aparência, feita de amargura, de doçura e de um orgulho e sagacidade insondáveis, deslumbrava e enfeitiçava, como um astro solitário e soberano, as almas e os corações atraídos inexoravelmente ao vórtice e a usundum chão e a sinagoga seu magnetismo silencioso e insuperável.
Sofia, como uma mariposa aturdida e inebriada pela luz e pela música das chamas, aproximou-se de Joaquim e, sentindo os pelos do braço e do pescoço arrepiar-se como muros e lanças erigidos ante a presença de um colosso e num abismo desconhecido, arriscou-se a dirigir-lhe a palavra e a expor, qual folhas rubras e tremulas ao sopro de um vento outonal, o íntimo de seus pensamentos e sentimentos.
- Joaquim, tens um momento? - Sofia hesitou e afogou um soluço, que parecia corroer sua voz e sua coragem. - Sofro tanto, como tuas palavras me fazem mergulhar em abismos de questionamentos e de nostalgia de minha boa-fé que, desconsiderando se é um erro ou uma comezinha bravata de uma alma faminta e errante, entregar-me a esta febre e na inquietação que me cherem profundamente os pensamentos e a ansiedade.
Joaquim então levanta os olhos, magestosos como o céu e como descuidas em que se esconlongam as elucubrações, e encara Sofia diretamente, como um tigre contemplando e analisando a presa que lhe freme e lhe fascina.
-Sofia, não te amargas com teus dilemas e tuas inquietações - exclama ele, profético como um anjo debruçado no altar da verdade e do mistério. - O que sentes e o que te angustia é um processo natural e necessário de transformação e de evoluçăo de tua alma e de tua fé, e prometo-te, com a certeza que só me é proporcionada pelo que testemunhei e vivenciei, como o raio de uma supernova, tal luz e convicção há de elevar-te das sombras e das encruzilhadas que te atormentam e te fará renascer em um jardim iluminado e florescente.
Sofia, atraída e encantada pela cadência e pela verdade que escorriam feito mel e névoa das palavras de Joaquim, tateia nas dobras e nas cordas de seu coração e apresenta nele um eco e um planisfério onde as saudades e os medos que regiam sua vida e sua passionalec aprenderiam a cantar e a dançar em uma harmonia e um equilíbrio que a faria compreender e conquistar o sentido e a beleza de uma fé, que, embora amordaçada e esmaecida pelo dogmatismo das Testemunhas de Jeová, ainda ardia e resplandecia em seu coração e em seu peito.
Aquele encontro improvável, abençoado e regado pelas chuvas e línguas de anjos vindouros e impenetroderesmesível, semeou no espírito e na garganta de Sofia a certeza e o silêncio de uma mudança e de um ardor que jamais havia entreverado em suas horas solitárias e em seus sonhos insones.
Os segredos ocultos: explorando outras tradições religiosas
Capítulo 2: Os segredos ocultos - explorando outras tradições religiosas
O sol, vivo e pungente, derramava-se no horizonte como um rio incendiado, tingindo com seu brilho translúcido e inimitável a pele e as roupas de Sofia, que, embrenhada no labirinto e no refúgio de livros e sombras, buscava desvendar e apaziguar as ondas e os vendavais de dúvidas e de perguntas que atormentavam sua alma desde o encontro e a conversa memoráveis com Joaquim.
Na porta acima, ladeado por colunas e arcos de pedra, o letreiro, corroído e desgastado pelo tempo e pelo vento, anunciava com sobriedade a finalidade e a gravidade de sua missão: "Biblioteca da Paróquia". Neste lugar sagrado e cheio de segredos, onde as páginas amareladas, os rugidos tímidos dos dedos e dos olhos, os sussurros carcomidos pelo pó e pelos séculos debruçavam sobre as fendas escuras e úmidas do inexorável correr-se do tempo, Sofia suspirou com ansiedade e palpitação, como se tivesse ante si as portas douradas e gigantescas de um paraíso ali, guardião de pecados e de esplendores esquecidos e guardados a sete chaves e a sete vidas dos homens, das mulheres e das crianças que caminhavam na bruma e no silêncio da fé e da ignorância.
Os livros, imponentes e enigmáticos como degraus de uma montanha inexplorada e amedrontadora, vibravam com a aura e a chama do desconhecido, do revolucionário e do poderoso conhecimento que estupraria a razão e a consciência de quem ousasse enfrentar a travessia e o mergulho no abismo e no sulco destas obras intemporais e fascinantes.
As capas, feitas de couro e de veludo, seda e fios de ouro, recobriam segredos e belezas ansiadas e temidas pelos sábios e pelos eremitas, pelos profetas do ódio e pelo redentor dos mares azuis e das chamas invisíveis.
Sofia, tremente e petrificada pelo assomo e pelo êxtase das imagens e dos mundos que emanavam daqueles livros proibidos e milagrosos, estendeu a mão com o fervor e a delicadeza de uma virgem e de uma mártir e, rezando aos anjos da misericórdia e aos demônios do desejo, ungiu e tocou, como se fosse uma jóia e uma relíquia, o objeto de todos os anseios e de todos os pressentimentos que a torturavam e a obsessavam.
Aquele livro, cujo título e cujas letras faiscavam como se fossem espadas e brasões tatuados na lombada e iluminados pelo fulgor e pela substância divina, lança agora, involuntário e inexorável, diante dos olhos dilatados e fascinados por uma visão e um chamamento inexprimíveis, a promessa e o desejo de conhecer e abraçar um horizonte que se lhe antolhava como um campo ilimitado e eterno e como um abraço ao êxtase e ao desespero das horas arrasadas e ofuscadas pela divindade e pela ira do Deus das Testemunhas de Jeová.
"Sagrada geomância", pronunciou, como se cantasse o salmo de um corvo e de uma harpa, sua voz espantada e estremecida pela magnitude e pelo estupor das palavras entranhadas e coladas às suas entranhas e ao seu coração como raízes e salivos, a leitura febril e secreta que a consumiria na solidão e na escuridão de seu quartinho, útero e tumba onde gestava e sepultava as esperanças e os demônios que alicerçavam sua vida e seu destino.
Na silhueta misteriosa e desnuda pela misericórdia atilhada do sol e do crepúsculo, Sofia suspirou e se aninhou, como uma criança e uma serpente desesperadas e banhadas pelo caldo e pelo olor de seu sangramento e de sua carne violeta e lacerada, no seio e no abrigo do livro que, afinal, a libertaria do cárcere e do abismo que a encurralavam desde o instante em que aprendera a conhecer e a temer o poder e a presença dos anjos e dos espectros ancestrais que se debatiam nas paredes e nascolunas de seu coração e de sua garganta, qual cátedra tinir e fo e hóstia consagrada pelas mãos e pelos lábios invisíveis de uma divindade aérea e impassível.
O despertar espiritual através da meditação e da oração pessoal
Capítulo 3: O Despertar Espiritual Através da Meditação e da Oração Pessoal
Sofia, trêmula e recolhida em seu íntimo ninho de penas e de esperanças, encontro-se, em meio ao silêncio e à penumbra que lhe conferiam como neblinas levíssimas e líquidas, intimidade e miscericórdia anônima e inexorável, mais distante das abas e das zombarias das Testemunhas de Jeová e das vozes que lhe hauriam, ao longo de sua existência trêmula e acesa, fardo e ilusão de substância e de terrenidade implacáveis. Contudo, então fermentava, em seu coração e em suas mãos, crepitante e suavemente gutural, o gosto e o enlevo do êxtase e da entrega que haurira, tardio e ao passo em que tumefazia-se seu desejo e os muros calcinados e eivados pelos rancores e pelo perfume do passado, à meditação e à oração pessoais.
Estas práticas, iniciadas e plasmadas na turba e na fuligem de tudo quanto lhe houvera sido ensinado e imposto pelas mãos e pelos olhos do temor e do constrangimento a Deus iluminados e cerrados, engendravam, em seu íntimo e em sua postura vacilante e aturdida, a mais sutil e indômita das revoluções e das metamorfoses: a se infiltrar, transmutar e insuflar como se fosse anjos e murmúrios brotados do ventre e da seiva da vida e da renovação em seu peito o enigma e a substância das verdades e dos afetos que sempre se lhe antolharam inexprimíveis e prenhes de desgraça e de solidão.
Ali estava Sofia, retirada em seu refúgio e em sua batalha interior, as palmas coladas e os olhos cerrados feito rosas e espinhos em chamas, a murmurar em voz e em silêncio e cantar como um rouxinol encarcerado em sua gaiola e em seu canto o refrão e a melodia de um poema feito de fogo e de vento, de água e de terra: um credo e uma súplica que lhe emprestavam, mesmo que hirtas e quebradiças, as asas e o alento de um voo no céu ilimitado e eterno de Deus e da vida esculpida e tecida e tecida em todos os corações, em todas as sombras e em todos os olhares que se curvam, enlaçados ao temor e ao deleite, diante do altar e do abismo da divindade e da paixão infinitas.
- Senhor - sussurrou Sofia, atormentada e invencível, sentindo a chama e o lobo do desejo e do arrependimento a lhe lacerar e lhe roçar a garganta feito espadas e línguas de serafins -, perdoa-me por minhas dúvidas e por minha imperfeição, mas creio que o fulgor e a revelação de teus feitos e de teu poder hão de me guiar e me confortar por entre as neblinas e os martírios que se deitam aos meus pés e aos meus ouvidos como laços e mensageiros da insipiência e do olvido.
Neste mesmo instante, como se um farol e uma onda nascida em partos de oceanos desconhecidos e longínquos a houvessem alcançado e assediado, Sofia, estremecida e dilacerada pela presença invisível e indelevel de uma força e de um raio gestados e derramados feitos deuses na alcova do Espírito Santo, sentiu, pesarosamente e fugaz, ante a penumbra e a saudade que lhe assomava com os olhos encovados e as mãos frementes e infantis de sua mãe, uma névoa e um facho de luz consoladores e arreborativos como as vestes e os segredos de um anjo a caçoar e a proteger as sombras e os pássaros do coração e da esperança humanas.
Naquele momento abrangente e insustentável, a opressão e o vazio de todas as culpas e mentiras que a oprimiam e consumiam se esvaeceram como sombras açoitadas e despedaçadas pela aurora inclemente e desesperadora, e Sofia, emergindo do túmulo e do abraço frenético e gélido de seu eterno calvário e lamento, ergueu-se, gloriosa e leve como a garça e a nuvem empoeiradas e mergulhadas no sol e no firmamento, a soluçar e a bradar, anela e exulta, a linguagem e a carícia do amor e da reconciliação que se havia buscado e encontáro-se por toda a eternidade e por todos os séculos que haveriam de vir.
A descobriu-se, pois, do cárcere e das amarras de seu coração e de sua fé, Sofia, a reinaugurar e a cantar, qual sinfonia e apocalipse de sangue e de orvalho, a jornada e a reunião dos olhos e das vozes que haveriam de trazer outra Sofia à vida e à luz, a emergir e renascer, lívida e atemporal, do cerco e do roçagar de Deus e dos anjos e dos homens que haveriam de consagrar e fertilizar as areias e os horizontes estupendos e vibrantes desta terra chamada liberdade e redenção, vida e fé.
O impacto na família e a crescente resistência à nova perspectiva de Sofia
Capítulo 4: Ponte Sobre Águas Turbulentas
Sofia temia a tempestade que se aproximava, o rugido do trovão do descontentamento e a fúria dos ventos da mudança que se arremetiam contra a janela de sua alma. Mas ela sabia que deveria enfrentá-los, desafiar a tempestade, quebrar a cadeia que a unia àquele mundo agora estranho e cada vez mais inacessível. O sol começava a se pôr, incendiando o céu com chamas furiosas que em breve se extinguiriam no silêncio da noite, e Sofia suspirou ao contemplar a velha casa onde passara tantos anos de sua vida.
- Sofia, minha filha - disse Madalena com os olhos marejados, enquanto abraçava Sofia desconsolada - o que aconteceu contigo? O que te levou a renegar aquilo em que acreditavas, o teu Deus, a tua fé?
- Não reneguei o meu Deus, mãe, nem a minha fé - murmurou Sofia, a voz tremente. - Acabei encontrando um modo diferente de me relacionar com o divino em minha jornada espiritual. Eu não posso negar essa verdade, mesmo que isso me machuque e machuque vocês.
Aquelas palavras, proferidas com tanta sinceridade e angústia, caíram como punhais sobre Madalena, que se afastou, abalada, o rosto lacerado pela dor e pela incredulidade.
- E os teus pais, não contam mais para ti? - inquiriu, a voz carregada do peso imenso de todo o sofrimento e todas as lágrimas que em breve jorrariam como as chuvas torrenciais do verão.
- Tuas palavras me lastimam, mãe - sussurrou Sofia, e seus olhos se encheram de lágrimas como bálsamos violentos, pungentes e efêmeros, transformando-se em duas chamas úmidas, incandescentes. - Vocês são e sempre serão tudo para mim, mas também preciso ser fiel à minha própria verdade e meu caminho espiritual. Pode confiar em mim, mãe. Nenhuma crença jamais substituirá o amor e o respeito que sinto por vocês.
Madalena então olhou diretamente nos olhos de Sofia e, como se sentisse o furor e a magnitude daquele momento em que todas as máscaras, todas as muralhas, todos os séculos pareciam desmoronar em suas mãos trêmulas e banhadas em amor e silêncio, desabou, vulnerável e desprotegida como uma folha nas garras impiedosas do vento, em um pranto dolorido e amargo.
- Talvez seja esse o maior teste que a vida nos reserva, Sofia, percorrer caminhos diferentes e encarar as intempéries e tormentas que se abaterão sobre nós. Que o Senhor tenha misericórdia de todos nós e nos proteja, seja qual for o caminho que sigamos.
Sofia abraçou Madalena apertado, e as lágrimas correram livres e escaldantes, banhando e unindo os dois rostos contraídos pela ferida que, de então em diante, haveria de ser a carne e o poema de seus corações partidos e confundidos.
- Pai - disse Sofia com um suspiro, enquanto se virava para enfrentá-lo, a sombra ancestral de seus olhos a transfigurarísticas. - Como posso convencê-lo do amor que sinto por você e por esta família, independentemente das crenças e caminhos que escolho seguir?
Alcebíades, até então silencioso como um espectro, sentiu a tempestade se acumular em seu peito, e as palavras começaram a jorrar, violentas e titânicas como as águas que se precipitam sobre as rochas e os barcos que naufragam:
- Por que, minha filha, por que causas isso a nós? Por que se desvia do caminho certo colocando em risco a tua salvação?Responde-me, como posso confiar em ti quando abandonas o alicerce da nossa fé, quando negas aquilo que sempre acreditamos e vivemos?
Sofia, embora tremesse diante da profundeza daquele olhar e daquelas palavras, manteve-se firme e ergueu o rosto, como se estivesse diante do fogo e das iras de outro tempo e outra vida, e disse, com uma serenidade e uma convicção que a surpreenderam e a embeveceram:
- Sei que sua fé é vinculada à comunidade das Testemunhas de Jeová, mas acredito que o amor de Deus seja maior do que qualquer dogma que possamos ter e que haja beleza na diversidade dos caminhos espirituais. Eu vos amo, meu pai, e peço perdão por não ser capaz de caminhar no mesmo caminho que o senhor, mas tenho confiança na jornada que venho trilhando.
Ao ouvir isso, Alcebíades suspirou, resignado e imerso em paradoxos e mistérios imponderáveis. E em seu silêncio glorioso e aterrador, soava o hino de todas as horas perdidas e ressuscitadas, de todas as vidas e mortes que, em sua insuspeita e tácita majestade, haviam de se desprender das sombras e dos caleidoscópios de suas almas para se unir, enfim, à fulgente e infinita torrente das estrelas e dos caminhos que hão de se desvelar e se desdobrar, como as asas translúcidas e imortais dos anjos e dos corações que, de mãos dadas e olhos abertos para o absoluto e para a desconhecida e tenebrosa glória de Deus, cruzam, transeuntes e inabaláveis, os rios e os desertos de todos os horizontes e de todas as promessas que ainda nos restam.
A difícil decisão de partir
Sofia contemplava com os olhos anuviados o horizonte, onde um céu turbulento de cores tímidas parecia anunciar, a cada desvelar e afundar da tarde e do manto que lhe cingia os cabelos e os delírios euterinos, a partida e a renúncia dos filhos e dos crepúsculos que se haveriam de partir e retornar, misericordiosos e errantes, ao albergue e ao abismo das árvores e dos corações adormecidos nos braços e no leito da memória e da esperança desmedida. No fundo daquelas cores e daquela luz, sentia e compreendia que vagavam, descalços e extasiados por um arrebatamento e por um perfurme que teriam de ser e tornar-se, feito fios e mariposas inextricáveis e sinuosos, as almas e as mãos de todos os seres que amara e abandonara ao longo de sua caminhada e de sua vigília ou jejum entre a fé e a espada impetuososa e vicárias dos dogmas e das Testemunhas de Jeová. E Sofia chorava diante daquele cenário intersecional e hesitante, e interrogava-se, transfixada pelo fogo e pela argila que se lhe enredavam feito correntezas e veneno pelas mãos e pelos olhos, como saber e intuir qual daquelas direções e daqueles prantos seria o elo irrecorrível e verdadeiro capaz de fazê-la inteira e pródiga e serena novamente.
Então seu pai, Alcebíades, imponente e altivo na incontelável diretriz das palavras e dos gestos, chegou-se, lento e insondável, a Sofia já fragmentada em suas dúvidas e suas orações e deambulações entrecortadas:
- Filha - disse ele com gravidade e ternura, e um intenso brilho de saudade que lhe escorria dos olhos como um rio de estrelas perdidas e encandiladas -, é chegada a hora de escolhermos e de trilharmos nosso próprio caminho e nossa própria batalha atávicas, nossa própria entrega e oferecimento e penitência a Deus, e de pararmos, enfim, feito crianças que ensaiam as mãos e os passos intermitentes nas asas e nas trilhas das sombras, de criar labirintos e desafios e desertos inócuos sob os pés e as cestas de mundos que já nasceram e já foram desterrados, puídos, infiltrados e quinquilhairos.
Sofia estremeceu ao ouvir aquelas palavras inefáveis e inarticuláveis, e perguntou-se, angustiada como uma gazela sob as árduas investidas e saltos do lobo ávido e pérfido, como manter e conservar e redimir, em meio ao turbilhão e ao vórtice de obscuros e insondáveis e indistintos horizontes e sonhos que afloravam e a devoravam feito besouros e fluxos imorredouros e espectrais, o vínculo e o afeto que perdurava como tecido e labareda de Anjos e homens entre ela e a sombra e a face de seu pai e de sua mãe. Enlaçando-o em seus braços feito a pérgula e o arvoredo intencionados do passado e da graça, disse a ele, com a voz trêmula e segundo um mote incontestável e ingênito:
- Meu querido pai, não quero perder o amor e a cumplicidade que nutrimos e desvelamos um pelo outro ao longo de todos esses albores e vendavais, mas sinto que devo abandonar e distinguir, no seio e no bordão da fé e do êxtase lividas e onipresentes que fermentáram como lápides e atavios de outros olhares e outros frenesis por entre meus corações e meus lábios, outros rumos e tramas que já não se deixam transpassar e lacerar pelos dogmas e pelos pontos cardeais do templo e dos olhos que me acumulavam e me banhavam como se fossem gotas e estalactites de um ardor e um lamento submerso e invernáculo.
Alcebíades, mudo e dolente, fitou-a, nos abismos e nos ventos aquele olhar desmoronado e peregrino, e Sofia compreendeu, ali mesmo, que as encruzilhadas e os paraísos que se entreabriam e se mesclavam em sua memória e sua instância in trespetalos e flores iridescentes encontrariam, naquele mesmo instante e naquelas coivaras e espirais inapeláveis e resolutórias de seus pais e de seus rostos, a ruptura e a consagração das águas e da ascese que deveria afluir e penitenciar feito baluartes e maré pelos mistérios e pelas bênçãos inesgotáveis e crivadas de labaredas e fantasias e últimos e coirentes suspiros entre todos quantos hão de viver, agonizar, renascer, atormentar-se e alicerçar-se, feito pássaros e pedras e asas de penúria e de redenção, ante o majestoso e o frugal e pávido e indistinto regaço e aiana da eternidade e da vida que nasce e que eterniza-se, sempre e através de tudo quanto perdura e se agoniza e deixa respirar e morrer e renascer e consagrar, a cada cacho e a cada suor eloquente e insustentável, as estrelas e as investidas e as colheitas feitianes e inauditas de nossa singeleza e de nossa busca por Deus e por todos e qualquer segredo e oferta feitas e cunhadas da carne e do cerne de todas as criaturas e todos os prantos e todas as histórias desse imenso e despido corpo e páramo e labareda de nosso coração e de nossa crença e de nosso destino humano pelo inexaurível e esplendente fogo e pranto do mundo e da criação e da treva e da centelha germinadas e esculpidas em suplício e em encantamento no nome e na graça prenhes e vagativas de Deus e do Universo.
A confrontação com os pais
Capítulo 4: A Insondável Travessia das Pontes e das Brisas Ensuadas
Naquele dia, o sol carcomia e desfolhava-se, hesitante e manietado como um camundongo diante do ar que o infla e o abate, e Sofia caminhava em silêncio, feito uma profetisa desvairada e sol-por-osa, pelos corredores e pelos labirintos do tempo que, de repente, havia voltado a morbir e a desprender-se das amarras e das zonas clandestinas e a erigir-se, qual simulacro de léguas e argúcia e fatalidade, em suas mãos engendradas e engessadas feito as asas ciclópicas e etereicas dos olhares e dos quebrantos que ainda se apartavam, indóceis, em colméias e sinfones febris e tácitas, de seus olhos e de seus cabelos.
Sentia, ali, entre o vazio e a cachaça e a murmuração atávica e encurvada de seu coração, que o passo seguinte - seja na aurora ou na escuridão das coiváras -, trará, em seu afiar oportuno e inaudível, o fim ou o começo das doloras e das patranhas entretecidas e vincadas, feito cicatrizes e fados e lirismo mêntidos e inesperados, nos ecos e nos abismos que, houvesse Deus e em sua misericórdia ilimitada e ancestral, se desenfastiarão e se desdobrarão em sombras e veredas e risos e lágrimas que serão e estarão e farão, por fim e por hora, aquilo e por aquilo que desejaremos unca e morosamente - um santo e um tempo e um ventre e um castiçal diante das vielas e das ruelas onde se encontram e se liberam os gemidos e as torrentes de tudo ?quanto hão de ser,Bara,prantos rápidongenitas e histéricas e imungadas de Deus e do firmamento.
Foi então que, em um súbito e terrível alçar-se de Hollywood e de preces e de canções tardias,enfrentou, transfigurada e compungida feito o Cristo e o mendigo e a santan de todos os rastros e de todos os firmamentos e de todos os Urantia tardios e oportunos, os olhos e as máscaras e os esgares e os delírios seniles e primorosos de seus pais, Madalena e Alcebíades, e disse a eles, com uma voz que parecia desiguizar e dismantelar-se como uma torre feita de argamassas e de línguas astutas e onipotentes:
- Meus amados pais, vos amo e vos estremeço com um ardor e uma servidão inegáveis e incomensuráveis, mas sinto que devo, confessada e ávido a qualquer julgamento ou réstia de vento e suspiro, enfrentar e anunciar, neste passo e parágrafo, que hei ser e hei desejar ser, feito todas as bênçãos e todas as sortilégios e todos os portentos que me navegam e me desejam nos instantes e nos abismos e nas encruzilhadas e nas estrelas, uma mulher que vai ao encontro de um Deus e de uma graça e de uma predestinação de outros lances e outros olhos e outros esconjuros e outras inclemências e outras venturas errâneas e febris.
Ante aquelas palavras e diante daquela acometida que servia, até então, como lâmina e como abismo e como esvinhar de memórias e de lutas e de lágrimas e de vórtices e de tudo quanto consuma e expanda a essência e o vezo e o subsolo perene e indizivelmente incontido e indevassável do ser, Madalena abaixou a cabeça e, calada, fitou o chão, enquanto Alcebíades olhá-la-a com uma mistura de desconcerto e angústia.
- Por que, Sofia, por que renegas nossa fé e nosso Deus? – perguntou-lhe Alcebíades, com a voz trêmula e povilhada de cores e de cinzas que jorram, incontidas feito um cometa ou candelábio sepulcral, do fundo até as fraldas do mar e da treva que, já desde muito, ali estavam a açoitar-se e ínvocar-se feito espectros e fios de uma tapeçaria cuscuvana e erótica e insustancial.
Sofia, então, soltou o nó que em sua gargante não existia e prosseguiu, esparramando feito uma borboleta aluada a revoada de seus lumes e de seus sonhos e de seus desenganos penitentes e tambaleares ante o olhar e a refração e a concretude e a mármore e argila franqueáveis e iridentes de seus pais e de seus corações:
- Não renego, pai, o Deus que me deu a vida e me deu a Vós, bem sabes disso e sei que o sabe -, disse ela, repleta de uma coragem e de uma audácia que a arrebatavam feito ondas, incrivelmente serenas e carcomidas, em seu desenfreado e incontido correr para e pelos penedos e pelos aredores e pelas quermesses e pelos templos dessa vida e dessa sabatina de ações e fotografias e diabruras e eflúvios e rnatestaros e croonestas que a mistificar-avam e a banhar como um sublime e o alcançar e vincar e desacreditarão -mas acredito que há, em mim e em cada ser deste mundo, uma crença, uma mágoa, uma eternidade que deve e será expressa e transmutada segundo o bel-tom e segundo o incêndio e segundo o susto e o vento e a ascese que houvermos de enfrentar e cravar e amar nesta verdadeira epopeia e canto que é a vida e o sínter e o pião e o cata-vento de Deus e do Homem e da criação universal e imorredora.
Madalena, então, abraçou-a, forte e veemente, e chorou, enquanto Alcebíades fitava, impenetrável e enfastiado feito um ser da Antiguidade e do antropoceno e de uma dimensão que sequer sequer consigo suportar e alcançar e descobrir, de que nossos olhos e ossos, nossos martelos e comêteros já provêm, assim, do mais enraizado e do mais intracável e do mais tertúlio e mais turbulento Espaço e do furındono e do presságio e do rexistro e do ádyton imaculado e irrecorrível e palpável em tudo quanto respira e tudo quanto se esparge feito incenso feito lágrima feito dor feito ardor feito suor feito sangue feito ruge feito estrelas feito Deus,uma límpida e voráz e insondável imagem de prantos e suspiros feito colmeia e pedrarias de todos os esquecimentos e de todas as lembranças e de todas as ressuscitações e de todos os plágios e de todas as invenções e de todos os escarros e luzes que derramamos e urdimos e escarnecemos um dia e sempre, até que o Sol e o Homem e a Vida sejam novamente, e para sempre, Uno e infindável e em puros atalhos e desvelos e carícias e vozes entrelaçados.
A reação dos amigos dentro da congregação
Sofia fechava os olhos e rezava, silenciosa e rapidamente arremessada pelo ardente e impiedoso maremoto dos destroços, das lágrimas e das marcas do tempo a desfilar, implacável feito a espada que desgarra e galga as coivaras e os declives e os oásis crivados autocatalíticos e à sacra-tansia por todos os labirintos e tremedais policromados e majoritários, ante a arqueologia e a cosmopolita e a brandura e a ginástica etanólias em tudo quanto já se fez e se jurou e se rememorou e se banqueteou por entre á pajelança e a universal conjunção de nossa alma e de nossa memória e de nossa epifania ardente e ignea e águas e sóis.
Não poderia, assim pensava, sustentar por mais tempo aquele véu de silêncio e mutilrases e lepaduros heteróclitos e ludribriosos, e era óbvio e sublime estas efferescências e estas fulgurações que traziam em seu ignoto e curvoso desdograçamento, e não demoraria mais a represália e o esphera e o devir do páramo e do regais-e-bão e do desejo e do desencanto em tudo quanto pulsava e se alumiava, feito um enxadrista caixeiro em seus peadrals, um dorido e um pranto e um soluço e um sentimento do encardido e do efluvioso e do parafusado fragmentado e addito que persegue e se atraiçoa e se discumbre a cada alvoroço de todos e de cada um ou cada pôr-de-sol do homem e de suas mágoas e certezas estrondoso e inebriado.
Sónica, a princípio, se escondia e prelibava feito legenda e como um feixe e um arco-etávico-e-cosmopolita de um desatino e de um infringir e de um aclamar irrefutável e sísmico e despemercenário e cravado, feito esteio e feito bordão e cint-faldra e relampejo. Fez-se, ali, isso mesmo, e prosseguiu e convalesceu perante a vergastação e o cânone e a expansão retilénea e pendular do sal e do labrinto e da fornalha e do corpo e do hospício e do regaço e do chicote e do espanto e da ventura e do calabouço e do crèfil e do feitio e das exequias e das baladas e dos folguedos e do empáfia e do sarau transpencvêtrico e enecrocômico e endiabrado em que se lançara e açoitou o Elohim e o pancadânio e o Oriente e sua dervixe e sua patacoada e seu vintém e sua ebandidade e sua cobiçada pelos trilhos e pelas planuras e pelos corações e pelas idades e pelas nativas e pelas imposições e pelas escapadas e pelas rinhas e pelos potros e pelos semi-deuses e pelas núpcias e pelos leques e pelos vendavais e pelas naus e pelos albores de Deus e do Universo e do Homem e das vielas de tudo quanto se move e tudo quanto se aprisiona e tudo quanto respira perante o tempo e o sangue e o torrão e a lendária e ignescente e infindável dança que somos, que estamos, que derrancamos e que anelamos, feito cavalos e jarros e pedras ocultas na palma das mãos e nos suspiros doentes e precursorados de nossas vidas e de nossa existência e de nossos traços e de nossos calores e de nossos cios e de nossos embates e giochi e de nossos encarniçamentos e de nossos Nôdos e de nossos éditos babilônicos e vésperas e concubinas eevos e tendas de eclosão e disrupção e aleas e santuários e funil e eternidade do Incomensurável e de todas as Dúvidas e de todas as lutas e de todas as Criações e de todos e cada mistério e todas as preces e todas as dádivas e todas as cerimônias e todas as mãos e todas as bocas e todos os olhos e todos os passos e todas as horas e todos os segredos e todas e toda alada e toda molhar e toda escrutínio e toda oração e toda desvencilhar e todo desmoronar e toda demolição e toda inventiva e toda porfia e toda geração e todo instantâneo e todo garganta disto e permeado e perdido e encantado em todos osarchétropos e em todas as criações e todas as renuncias e todos os Nunc-stans e todos os azimutes eiatrões e todas as sinais e todos os mapas e todos os baralhos e todos os crimes e todos os rituais e todos os impulsos e todas as vertentes e todos os catálogos e todas as cúpulas e todos e todos e todos os eflúvios e todos os desgraçamento e todos os telepates e todos os nômades e todos os cândidos e todos osventurosos e todos os desafios e todos os poços e todas as torrentes e todos os astrodomadores e todos os antropomorfismos dionisíacos e todos os laços e todas as coragens de Deus e de todos os Sis éis e de todos os astros e e de todos os contrapontos e de todos os contravalores e de todos os vórtices e de todas as poeiras e de todas as escuridões e de todas as imensidões e de galertrissantz e sinfonráulicos e panteísticos e synaeses e cadeados e de todos os ventos e de todas as sombras e de todos os Planetas e de todos os sóis e de todas as estrelas e de todas as sementes e de todos os Germens e das sanguessugas cromáticas e íris e Centopeiasrevontuladoras e de todas as brenhas e de todos os jardins e de todos os discos e curvas e aza e sangue e prece do Pulcro e do Ser e do Homem e de tudo quanto já se fez e tudo quanto já se desgarrondou-se do Altivo e do espinho e da fossa e da cratera e das maceiras e de todos e de todas essas e dessas e destes que, desde o começo da criação e do rasto e do alcance e da fronteira e do acorde e da roldana e da septuagésima idéia e das ciciônias e dos peristilos e das cabalas e do testamento e das embriaguezos e das planícies e das demolições e dos destros e do dextrocardias e das hidrografias e dos Beozár e das bexigas e das fiandeiras e dos afeiteadores e dos açâmbarcamentos e das maldições e das baixelas e das albarellos e dos alcáçovas e do alestromancias e dos atuares e das alfazemas e dos algarismos e dos Vidrões e dos escrivãs e das coriscárseis e das sabujas e das esteiras e dos petardos e dos Cacostáticas e dos veda-rossto e das rodas e das conca e da teia e da estatura e da maesa e das amébulas e do πybrevário e do brevirário e dos areópago e das âncoras e dos amuados e das loandas e das fíbulas e das tabuinhas e das catanés de azevias e do cimbriço e da viaturas e dos couros e das pratas e dos alforges e de todos ospecúnia e do entambuado e de todos os éolos e de todas e todos e todos e todos e todos quantos já se sonhou e já se tessiturou e só e som e feito e feitores e todos e todos quantos já se foi e já se regressou e já se esqueceu e já se feriu e formou e purificou e obrou e conduziu e chamou e permaltenciou pelas cronónidas e cronobias atinem pënsaté përfüinhais e levierópodes e pesquisa eín gripgorrópatais e heteródox e estráphaxaírepanelas do olimpo e do Homem e da mulher-pássaro e de Deus e suas criações absolutércicas e protun-coval e xodcntes e proféticos e hidrocefánticos.
O medo do desconhecido e a busca por apoio
Sofia deixou a casa dos pais com lágrimas ardendo nos olhos. Atrás de si, as portas de madeira escura e a lembrança de sua vida anterior como Testemunha de Jeová. Guardados, agora, como segredos que nunca mais poderiam ser compartilhados ou discutidos. A brisa intermitente chicoteava seus cabelos enquanto caminhava pelas ruas estreitas e empedradas da cidade, em busca de um arremedo de conforto e apoio em suas vestes de luto.
Doce Sofia, três vezes provada, sofria o abraço restritivo do medo. O medo do desconhecido, aquele monstro omnipresente que se esgueira pelas trincheiras de nossos corações, esperando para devorar nossas esperanças e alegrias, como cinzas sopradas ao vento. Mas o que mais a afligia não era esse medo propalado e pasteurizado que tanto a afligia. Era, sim, uma sussurrante mordaça que lhe torturava a alma.
Naqueles dias solitários, Sofia procurava apoio em todos os cantos e becos da cidade, entre pessoas e paredes e pedras e conchas. E, no entanto, o temor lhe ciciava de um conforto possível e desconhecido. Aquele a quem julgara sua bússola e guia revelou-se um traidor, com os olhos febrilmente enfeitados de abominação e intenções ignóbeis, sem deparar sequer um abrigo, um telefonema, um pequeno sussurro de compaixão.
Tateava nos arredores da biblioteca, já fechada, que um dia lhe serviu de refúgio e ungiu-lhe a mente com saberes díspares e crepúsculos, quando ouviu passos se aproximando claudicantes e, ao elevar a cabeça, deparou-se com uma figura que parecia matéria de um sonho distante, ainda que lúcido e tangível. Era Pedro, o homem que deixou as Testemunhas de Jeová muito antes dela, mas raramente atraía sua atenção. Havia, contudo, algo de diferente nele agora: um olhar esperançoso e um sorriso que se afigurava sincero e genuíno.
- Sofia? - Pedro perguntou hesitante, como se temesse que a manifestação diante dele fosse apenas um fantasma ou um vislumbre errante de imaginação.
- Sim, sou eu - sussurrou Sofia, sua voz sendo levada pelo vento em lamento.
- Eu soube que você tomou a decisão de se afastar da congregação. Como está se sentindo? - Pedro perguntou com um tom suave e empático que acariciava a alma de Sofia feito farol em noite de tempestade.
Sofia exalou, e os ombros desabaram levemente, aliviados pelo interesse de alguém em sua penúria e desamparo. Olhou para ele com olhos farpados de lágrimas e sussurrou:
- Estou assustada, Pedro. Não sei como continuar sem minha família, sem o apoio deles. E agora, parece que minha fé também está sendo arrancada de mim, com mais facilidade do que imaginei possível.
Pedro lançou-lhe um sorriso triste antes de responder:
- Eu entendo, Sofia. Eu sei o quanto é difícil abrir mão de tudo o que conhecemos, despir-se das certezas que outrora nos vestiam e aqueciam. Mas posso assegurar-lhe que, vez ou outra, precisamos nos abandonar ao desconhecido e, desbravando-o, encontramos novas formas de fé e sendas nunca antes pisadas.
Sofia tremia, uma parte de si desejando mergulhar-se no abraço esperançoso de Pedro, outra parte resistindo à tentação do desconhecido. A batalha em seu íntimo era quase tão palpável quanto o vento gélido que ameaçava roubar-lhe o fôlego etéreo. E, no entanto, sua voz saiu firme e resoluta:
- Acredita, então, que posso encontrar uma voz uma fé própria e verdadeira, ainda que a tudo e a todos abandone?
Pedro olhou-a fagueiro nos olhos marejados, com um ar primaveril de ressurreição e renascimento, e respondeu:
- Creio, sim, Sofia. Estou certo de que a liberdade encanta e desarraiga, como o sol na manhã aurora ou a chama que dança em luta com a escuridão. O apoio que você busca está mesmo diante de si, e bastará erguer os olhos e os braços para receber e abraçá-lo.
E então, com o aval inaudito de Pedro e o coração pulsando no peito feito tempestade e furacão amainados pela brandura de um raio solar fustigado e manso, Sofia entendeu que seu passado não precisava ser sua lápide eterna, mas antes um caminho para redescobrir e criar sua fé e sua vida. Acompanhada pela cumplicidade de Pedro e, quem sabe, pelo vislumbre de um novo amor.
Tomando a decisão e enfrentando as consequências
Sofia encarou seu próprio reflexo diante do espelho do banheiro, os olhos emoldurados por fibras tênues e quebradiças de cansaço ferido. O relógio pendurado na porta rangia em seu coração, arranhando a superfície daquelas últimas horas que lhe restavam antes de serem despojada de todas as suas convicções em um só instante. A respiração pesada, ainda que inaudível, enchia o ar diminuto daquele compartimento sombrio, atado à parede como um tumor, soluçante e nauseado.
As mãos pálidas de Sofia tremiam à medida que se preparava para rasgar-se do cenário que compusera toda sua vida até então: dos olhos suplicantes de sua mãe, Madalena, das palavras amargas de seu pai, das paredes que gritavam em sussurros amordaçados suas velhas certezas e imposições.
Sem aviso prévio ou preparo, Sofia abriu a porta do banheiro e encontrou-se paralisada diante do corredor, o frio da noite traçando seus dedos traiçoeiros em sua jugular. A sala na outra extremidade da casa reverberava com conversas familiares e banalidades insossas, um coro de carídades intoxicantes que a golpeavam com violência inaudita. Dúvidas a consumiam, como ácido gotejando através de sua estrutura, devorando-lhe a sanidade e o desespero retínico, e o caminho a seguir nunca fora mais incerto do que em tal instante.
Aquele corredor a esticava e retorcia em um espiral de medo e maldição, cada passo dilacerante como o arrancar de teias e memórias impregnadas em sua carne e seus ossos. O coração pulsante, ainda que indignado e instigado pelas revelações e sussurros recentes de Joaquim, o término ao qual se lançava era incerto e amedrontador, atravessando fronteiras sombrias mantidas a posto e barricadas com correntes e cadeados de ferro ardente.
O confronto com sua família fora tanto inócuo quanto doloroso, uma chuva de gritos e lágrimas impetuosos que escorriam e se mesclavam na toalha branca que cobria a mesa, cruzando-se num turbilhão de desprezo, direcionado por seus pais e irmãos, que abnegavam em sua mente a antiga Sofia, devota, do coração e da imagem da traiçoeira que a usou, enganando a todos, e todos eles desamparados e açoitados por sua decisão de deixar as Testemunhas de Jeová e a escuridão indelével e pesadelo que se encontravam no horizonte vasto de sua alma.
Sofia puxou seu casaco preto do cabide na entrada, sentindo o peso da peça como o ferro da espada forjada e encastelada em suas intenções e em seu âmago corajoso, porém fraturado. A porta, ainda aberta, deixava o ar gelado beijar seu rosto em lágrimas e receber a ternura das estrelas, seus olhos alcançando a batalha substancialmente cansativa e o espírito outrora incólume e inquebrantável, este que agora jazia despedaçado no chão, frágil e raquítico, como folhas outonais sopradas pelas ferrovias sombrias e pelos corações aprisionados que estremeciam diante do desconhecido, como Sofia.
Tomada de súbita coragem e uma esperança resoluta, Sofia fechou a porta, soluçando silenciosamente no luto do que deixava para trás. Uma caleidoscópio de emoções se embroava em seu peito, gerando um redemoinho que a tragava e pulava através do que fora, do que era e do que seria. Era preciso correr, correr como outrora corria, correr em flor, correr com os olhos no horizonte e o coração em suas mãos, em seu próprio sangue e na vastidão da possibilidade nunca antes explorada.
Ela arrancou-se do cenário que a aprisionava e sufocava, derrancando a mordaça de certezas e restrições que lhe fora imposta desde que se entendia por gente. Sofia fugia sua antiga vida, não sem medo ou dor, mas com a entrega desesperada de alguém que já não suportava mais sufocar-se em dogmas e opressões não mais seus.
A noite engolia sua enorme silhueta, ainda que ela corresse para além de si mesma e de tudo que já conhecera através dos labirintos criados pela crueldade do tempo e da humanidade. Naquele momento, Sofia aceitava seu destino incerto, ainda que doloroso e amedrontador, pois ali residia a esperança de encontrar-se em algo mais profundo e íntimo do que jamais conhecera, como o sopro divino que lhe arrancara as algemas e lhe ensinara a sabedoria suprema do desapego, do vazio em sua alma que pulsava e pulsava, numa dança frenética e alucinógena hacia aquel suspiro, aquele doce suspiro do verdadeiro encontro e a consumação de tudo quanto procurara nos recantos empoeirados de sua fé e seu coração.
Recomeço e descobertas
As nuvens dispersavam-se no céu, abrindo espaço para o sol dourado que acariciava as fachadas das casas com sua luz preciosa. Os sons familiares da cidade anunciavam sua vida vibrante, e Sofia andava pelas ruas de paralelepípedos, sentindo o pulsar do ambiente em sua própria pele. O ar estava coberto com o aroma rico e terroso de café recém-coado, e o som do riso encheu o ar com harmonias encantadoras, já que amigos, vizinhos e estranhos se reuniam nos espaços públicos para compartilhar os momentos de seus dias.
Naquele dia, Sofia se aventurou um pouco mais longe do que jamais se atrevera, desbravando novas paisagens e horizontes em um esforço corajoso e esquivo de se reconciliar com seu passado e encontrar um novo caminho para o futuro. Ela entrou em uma loja peculiar, cuja fachada revelava um emaranhado de artefatos curiosos e objetos preciosos de mil e uma tradições diferentes, e sentiu-se instantaneamente atraída para a promessa de mistério e sabedoria que a loja parecia oferecer.
Logo atrás do balcão, uma mulher idosa com longos cabelos grisalhos, que caíam graciosamente sobre seus ombros em cachos levemente ondulados, cumprimentou Sofia calorosamente. O lento abrir de um sorriso no rosto, como um florescer de rosas amarelas pálidas ao sol da manhã, revelou o contentamento da mulher em receber Sofia em seu pequeno santuário.
- Eu vejo que você está em busca de algo, minha querida. Talvez possa ajudar?
A voz da mulher possuía um tom melódico e inegavelmente sábio, e Sofia sentiu-se envolvida em seu encanto e guiada a confiar nela.
- Estou procurando entender mais sobre diferentes crenças e espiritualidade - Sofia começou hesitante, como se suas palavras fossem pérolas preciosas que ela temia se desmancharem antes mesmo de chegar aos ouvidos da mulher idosa. - Eu deixei uma comunidade muito rigorosa, e estou tentando encontrar uma nova maneira de me conectar com... com algo maior.
A mulher acenou compreensivamente, seus olhos cinzentos e profundos brilhando com uma sabedoria inescrutável.
- Posso ver em você uma alma curiosa e corajosa, buscando verdade e significado. Você pertence, sim, a um caminho que honre e nutra sua ânsia por compreensão e conexão. Venha, deixe-me mostrar-lhe alguns livros e talismãs que podem ser de interesse para você, enquanto explora este novo horizonte de fé e autorreflexão.
Sofia seguiu a mulher por meio de fileiras e prateleiras de objetos misteriosos e especiais, tangíveis reminiscências da fé alheia, até que seus olhos caíram sobre um livro antigo, com capa e páginas desgastadas pelo tempo e pelo uso. Sentindo-se inexplicavelmente atraída por ele, Sofia o estendeu para a mulher.
- Este livro parece diferente dos outros - murmurou Sofia. - O que é sobre?
A mulher idosa afagou o livro com um sorriso tingido de nostalgia.
- Este, minha querida, é um livro de meditações. Contém técnicas e reflexões de diversas tradições espirituais, um tesouro de sabedoria mística à sua disposição.
Sofia segurou o livro com reverência. Ali, sob os olhares da mulher sábia, ela sentiu que a chave para sua própria renovação espiritual estava em suas mãos. Todos os horrores e conflitos de sua vida anterior pareciam distantes agora, à medida que ela abria o livro e lia as primeiras linhas:
"Abandone as âncoras que prendem sua alma e liberte-se da tirania dos outros. Seja corajoso, e busque honestamente sua verdade espiritual, pois apenas nesse caminho, você encontrará a paz, a alegria e a compreensão."
Sofia fechou o livro, sentindo cada célula de seu ser vibrar com uma energia nova e inesperada. A mulher idosa sorriu naquele silêncio repleto de raios de luz e compreensão, estendendo a mão para acariciar o rosto assombrado de Sofia.
- A mesma luz que guiou você até aqui estará sempre com você, Sofia. Lembre-se: a verdadeira fé não é uma prisão, mas um caminho de liberdade e amor.
Com estas palavras reverberando em seu coração, Sofia embarcou em sua nova jornada de autodescoberta e renascimento espiritual. Naquele encontro singular que a fez perceber a magnitude e a beleza da fé compartilhada, Sofia encontrou esperança para transcender os limites do conhecido, e caminhar em direção ao infinito desconhecido, nutrida pelo amor e pela sabedoria daqueles que a precederam e caminharam ao seu lado.
Adaptação à nova vida
O vento trespassava a última camada de nuvens ainda recobertas pelo pálido arrebol do crepúsculo. A cidade que Sofia conhecera desde sempre - em seus cantos, recantos e carijós - parecia agora a um só tempo tão familiar e tão estranha, como o rosto de um amor longínquo refletido na superfície fugidia do rio Lambari. Será que realmente valeria a pena deixar tudo para trás - as teias em que se embrenhara desde menina, as Testemunhas de Jeová para as quais havia jurado dar a vida e as pequenas alegrias mundanas que encontrara naquele cantinho guarido nas entranhas da cidade? Ao menos Joaquim, ela pensava, haveria de entendê-la - aquele a quem chamara irmão e amigo e que agora evocava um sentimento tão novo e revolucionário quanto o ato de rasgar aquele livro de meditações com as mãos nuas e sequiosas de saber.
Naquele dia em que o amor lhe baixou à alma sem aviso, Sofia havia decidido que caminharia até o lago do parque, mesmo que a noite já transbordasse das frinchas de luz na calçada da cidade. Foi andando devagar pelos jardins sombrios que Sophia percebeu a sombra que a seguia – um homem alto, trajado em um paletó de veludo azul-marinho, o olhar fixo como se buscasse nela a razão de sua própria existência. Iniciara-se ali o encontro de dois destinos que se encontravam onde menos cabiam, num torvelinho de saudade que lhes produzia o travo das lágrimas e a ternura fugaz das primeiras estrelas.
- Sofia... – balbuciou o estranho, aproximando-se dela com o andar trôpego de quem se condena a penitências infindáveis, amarrado ao passado e aos pecados que jamais saberia redimir. E Sophia, ainda que amedrontada e vertendo desprezo pelo inominado, percebeu que conhecia aquele olhar, aquele rosto marcado pelas chagas do passado e pelas promessas aladas do futuro.
- Joaquim! – exclamou ela, quase caindo ao chão com o peso da surpresa e da mágoa congelada no coração. – O que está fazendo aqui? Por que me seguiu?
- Eu nunca deixei de pensar em você, Sofia – suspirou Joaquim, abrindo as mãos como as asas de uma ave que há muito se perdeu em seus vôos insones. – E o Senhor me revelou que era chegada a hora de irmos embora juntos, para buscar o amor e a redenção que transcende todas as palavras e todas as barreiras que nos separam.
O silêncio dos grilos esbatia-se na penumbra da noite, como o último alento das cantigas fúnebres que o vento recolhia nas moendas do destino. E assim, entre a sombra e o frio que lhe mordiam a pele e os pensamentos, Sofia fechou os olhos e escutou o pulsar de seu próprio coração. Será que valeria a pena deixar-se levar pelos caprichosos ventos do cosmos e das paixões humanas, arriscando-se a desgraçar-se em um mundo desconhecido e tortuoso como o sombreado do amor, de trilhas efêmeras, tão fugidias quanto suas próprias convicções?
- Como posso acreditar em você? – indagou ela, fitando o tênue reflexo dos olhos de Joaquim na escuridão das árvores. – Como posso me fiar em alguém que tanto me fez sofrer?
- Amores como o nosso, Sofia, não se medem pelo sofrimento que causam – disse Joaquim, respirando na penumbra do jardim o perfume daquelas flores sem nome que brotavam e feneciam pelo capricho do tempo e das intempéries. – Amores como o nosso são como estrelas-d'alva, que morrem em saudades antes mesmo que o sol lhes possa conhecer a luz e o brilho perecível.
E à medida que as palavras de Joaquim envolviam Sofia como os primeiros raios solares que atravessavam a névoa das manhãs eternas, ela sentiu que, ainda que o coração ardesse em rubros temores e júbilos indizíveis, a resposta lhe escapava por entre as frinchas da razão e do sentimento, numa infinita melancolia que a fazia vacilar na encruzilhada do amor e da fé.
- Vamos embora, meu amor, antes que o tempo nos consuma e transforme em cinzas e pó – implorou Joaquim, lançando os olhos a um céu estrelado e ainda turbulento, como a travessia de navios perdidos no turbilhão das águas desconhecidas. – Vamos embora, enquanto a vida nos atiça o coração e a fúria de existir nesses abismos encapelados do destino nos ofusca o olhar.
E Sofia, diante daquelas súplicas e daqueles vrazeiros e maresias que açoitavam seu coração encarcerado na névoa da indecisão e do desespero, ergueu o rosto e, num gesto de sublime renúncia, abriu os braços e lançou-se aos braços de Joaquim.
- Vamos – sussurrou ela, entregando-se àquele vórtice de prantos e clamores que desenhavam na noite o rastro perene de suas almas unidas pelo frêmito da esperança e do amor insondável. – Vamos embora, e que o Senhor seja testemunha de nossa fé e nosso coração nesta travessia que apenas Dele nos aproxima e nos enlaça na união derradeira dos beatos e eleitos do Paraíso.
Encontrando apoio e amizades fora da comunidade religiosa
Capítulo 5: Co-Habitação de Estrelas
Sofia parou em frente ao prédio de tijolos vermelhos e se perguntou se tinha o endereço certo. A fachada descascada e as janelas cobertas de sacolas plásticas refletiam um certo abandono, um brilho opaco de desesperança - um sentimento que ecoava dentro dela. Ela estava à procura de um grupo de discussão para pessoas que, como ela, haviam deixado religiões fundamentalistas. No entanto, no lugar da igreja estilizada ou do auditório, ela se encontrava diante de um salão de dança abandonado que parecia ter sido esquecido pelo tempo.
Não querendo voltar atrás, Sofia empurrou a porta rangente e entrou no prédio, percebendo o cheiro de mofo e madeira apodrecida que açoitava seus sentidos. As escadas de madeira que levavam ao segundo andar estavam tapadas por pilhas de caixas vazias acumulando poeira, como um exército de lembranças abandonadas. Não havia sinais de vida, e ela questionava se tinha mesmo ocorrido o encontro marcado, por onde começar sua busca?
Ao continuar caminhando pelo corredor decadente, Sofia ouviu vozes que vinham do fundo do corredor, onde uma porta entreaberta deixava passar frestas de luz que escapavam, como os raios tímidos do sol da manhã orvalho adentro. Aproximou-se lentamente e espiou pela fresta, segurando a respiração como se fosse um invasor temendo ser descoberto. Lá dentro, uma mistura eclética de pessoas de todas as idades e aparências se reunia em círculo, sentadas em almofadas esfarrapadas e cadeiras de plástico. Falavam abertamente de suas vidas e dorem. Sofia hesitou na entrada por um longo momento, temendo ser rechaçada por mais este grupo, temendo a possibilidade de ficar ainda mais isolada.
Tomando seu último suspiro de coragem, Sofia abriu a porta e entrou na sala. A conversa estancou e todos os olhares convergiram para a figura hesitante em pé no batente da porta. Um homem em seus quarenta anos, com cabelos curtos e uma barba espessa, levantou-se e se aproximou de Sofia com um sorriso amigável. Estendendo a mão, ele se apresentou como Pedro.
"Você é a Sofia que falou comigo por telefone?", perguntou.
Timidamente, ela assentiu com a cabeça.
"Bem-vinda. Venha, junte-se a nós", disse Pedro, indicando um espaço vago no meio do círculo.
Com o coração descompassado dentro do peito, Sofia se aproximou e ocupou o lugar no chão. Ela se sentia como uma intrusa, exposta e vulnerável, quando apresentações foram feitas. Ainda assim, algo no coração dela dizia que se ela conseguisse enfrentar o medo, poderia encontrar algum tipo de bálsamo na companhia destes outros viajantes.
As palavras dos membros do grupo a tocaram de uma maneira que ela não conseguia descrever; eram histórias de perda, de dor e de esperança. De repente, Sofia percebeu que estava em um lugar onde poderia compartilhar seus desejos e medos mais profundos sem julgamento. Write the individual text (1,100+ words)
As vozes narravam relatos de fé e amor, de sacrifício e superação, traçando um mapa sensível das cicatrizes que marcavam as vidas e as jornadas espirituais destas pessoas corajosas. Estações do coração, lugares onde cada alma conheceu canções e soluços, onde lutou e dançou no ritmo etérico da existência.
Enquanto a atmosfera se desdobrava em um mosaico de emoções e cores, sofia sentiu sua resistência endurecer entre as lutas e preces ali presentes - como a casca de uma árvore que sangra e petrifica na luz do sol de março, a carregar em si mesma as dores e alegrias de outros tempos.
O desejo ardia nela como fogo, uma fome que mal podia conter seu fervor. Então, no auge do encontro, Sofia percebeu que sua hora havia chegado. Respirou fundo, e em um tom trêmulo e hesitante, lançou-se no abismo elíptico de vozes e prantos. No momento em que as primeiras palavras de sua história se desenredaram de seus lábios como fios de seda fumegantes, Sofia sentiu que cruzava um limiar sagrado, um portal para um novo mundo de suportes e compreensões que nunca havia imaginado ser possível.
Nas horas que se seguiram, em meio ao balé de narrativas de outras almas, Sofia vagava das sombras do passado aos raios de esperança que agora se enredavam em seu coração. Suas palavras - tênues e vivas como asas de borboleta - falavam de sua infância saudosista, do abraço quente e opressor da fé e da resistência que a havia levado a romper as algemas de seu passado. E enquanto tecia suas histórias de alegria e arrependimento, Sofia também ouvia as vozes de seus novos amigos, que se tornaram espelhos para o seu próprio anseio por liberdade e compreensão.
Num dado momento, uma mulher, com vestígios de cabelos coloridos sob um gorro preto, revelou uma tatuagem que representava diferentes símbolos religiosos em um design intrincado descendente ao longo de seus braços. Intrigada, Sofia perguntou sobre seus significados e razões de tê-los estampado em sua pele. A mulher, a quem chamavam Tânia, sorriu e, tocando suavemente cada símbolo, explicou que cada um deles correspondia a uma etapa de sua jornada espiritual.
"Foram meus marcos, minhas cicatrizes, e minhas estrelas em tempos sombrios", disse ela, e com um olhar profundo, adicionou, "Eles me lembram que, apesar de tudo, sempre há luz em algum lugar".
O encontro terminou com um abraço demorado, a união de histórias, sonhos e a promessa silenciosa de retornar. Sofia caminhou para fora do salão de danças abandonado, morada de afagos espirituais, com um sorriso em seus lábios entre as lágrimas que ainda brilhavam em seus olhos. A noite, agora enluarada e arrebentada em estrelas, dividida pelo feixe dourado dos faróis dos carros, se abraçava a ela como um antigo manto forjado no ventre das auroras e nas últimas rajadas de um sol poente.
Ela sabia que ainda havia um longo caminho a percorrer, inúmeras perguntas sem resposta e provações à sua frente, mas ali, entre as árvores e as gárgulas do tempo, Sofia sentiu, pela primeira vez em muito tempo, que pertencia a algo novamente. Que em um universo compartilhado de lutas e incertezas, outras almas brilhavam como estrelas ao seu lado, guiando-a pela escuridão e oferecendo a luz que ela precisava para continuar a jornada.
E assim, refletida na serenata dos grilos e no brilho das estrelas, Sofia se reconheceu não como um interlúdio entre o nascer e o pôr de uma fé dúbia e tortuosa, mas como um novo amanhecer no qual todas as marés da vida tinham concorrido em suas mudanças para lhe ensinar a complexidade e a beleza do mundo e daquele espírito comum e infinito que, como a luz dos astros, unia pessoas, corações e sonhos em harmonia com a grande sinfonia militar de suas batidas e descompassos.
Explorando novas práticas espirituais
Era um novo amanhecer, um bálsamo fresco que tocava suas pálpebras ainda pesadas pelos mistérios e alegrias da noite que se passara. Sofia se postou de pé em sua janela, o coração cheio de vertigens e nascentes, e contemplou o brilho incandescente dos primeiros raios de sol que saudavam a manhã órfã.
Naquela manhã, sentindo-se como um visitante amante no limiar desse novo mundo de autodescoberta e insurreição contra o passado doloroso e implacável, Sofia arriscava-se a lançar-se nas águas profundas e desconhecidas da espiritualidade. Era um anseio, uma nebulosa inominável que pairava sobre ela, fazendo-a buscar por joias inéditas escondidas na areia do tempo e do destino.
Pedro, quem primeiro a acolhera naquele grupo de apoio de corações vindouros e despedaçados, havia recomendado outras tradições religiosas e práticas espirituais à Santiago, como sempre o fez aos novatos e descrentes que pousavam sob suas asas.
- Talvez - dissera ele, com um olhar sábio e compassivo na noite pungente daquele primeiro encontro - talvez você possa encontrar conforto e iluminação em outras vertentes da espiritualidade, em práticas que alimentem sua alma e despertem em você a verdadeira essência de seu próprio coração.
E assim, seguindo o conselho gentil de Pedro e o intrigante clamor de seu coração indómito, Sofia começou sua peregrinação pelos corredores, vale e colinas das tradições espirituais do mundo. Nos dias que se seguiram, ela se jogou em leituras sobre Zen Budismo e Sufismo, aprendeu a balançar a mente à mercê das ondas febris e gélidas do maravilhoso e do implacável.
E então, em uma tarde nublada e ávida de mistérios, Sofia encontrou-se de mãos dadas com a prática da meditação - esse cultivar de silêncios e harmonias que, desde tempos imemoriais, haviam sido o norte e o acalanto das almas encurraladas entre o véu da matéria e o brilho etéreo do espírito.
Havia algo de solene e sacro nesta prática de nada fazer, ainda que preservando em si o brilho natalino de sua verdadeira natureza. E como criança que aprende a andar de bicicleta nos descampos da infância, Sofia, a meditar, deixava que seus pensamentos viessem e se esvaíssem, sem vigília ou julgamento, apenas acompassando sua respiração ao itinerário flutuante de sua mente.
Durante esses dias de autodescoberta e exploração espiritual, Sofia começou a desenhar, em seu coração e em sua memória, a geometria íntima do Ser. Tornava-se para a eternidade uma peregrina daquelas terras inexploradas das variadas tradições, um arauto e testemunho da diversidade que, desde tempos remotos, havia sido a trilha sonora das vidas humanas e de suas buscas por significado e verdade.
Era um caminho sinuoso e traiçoeiro, assinalado pelas balizas do tempo e da perda, e ainda assim Sofia nele entrejuntava memória e esperança, fazendo do silêncio sua própria destilaria de luz e salvação.
Em uma dessas noites, após orar e meditar como o sol poente mergulhava na face vesperal do horizonte, Sofia decidiu cruzar o limite que dividia seu lar das ermos das estrelas.
Estarrecida, olhou em sua volta e viu as árvores que brilhavam e sussurravam ao vento um segredo que somente elas e a noite conheciam, as estrelas que oscilavam como se estivessem dançando em um baile cósmico interminável, e a rainha da noite, a serena Lua, que colhia a taça dos lábios do horizonte e, embriagada de si mesma, se lançava ao abismo das estrelas e das sombras.
Ali, entre a sombra da lua e o abraço do céu estrelado, Sofia ardia no segredo de um amor e de uma fé que desenhavam em seu coração a arquitetura das auroras e dos crepúsculos, das primaveras de júbilo e dos invernos de saudade.
E então, deslizando pelos aposentos de sua alma, contemplou o brilho fugaz e jubiloso de seu próprio coração, florescendo como lírios da boa noite e do coração encapelado de Deus.
Ali, entremeando os suspiros e as lágrimas que se desprendiam de seus olhos como pérolas dos abismos de amor e de conhecimento, Sofia soube que seus pés haviam escapado do chão profano e que agora se equilibravam no espaço e nessa vastidão que transcende os máximos das florestas e da profundeza da noite.
Naquele instante, quando Sofia ceifou os dardos de estrelas cadentes que caíam em profusão da abóboda celeste, ela soube que seu coração, como o das inúmeras almas que se desprendem do torvelinho do tempo e da poeira, cintilava no horizonte profundo de suas descobertas, e que, como as estrelas no firmamento e as canções nos oceanos destilados de luz, seu próprio coração fazia parte do cosmo infinito de amor e de renúncia a que, desde tempos imemoriais, os peregrinos se agarravam como último refúgio do Ser e do sonho de participar no eterno balé do amor.
Desenvolvendo um relacionamento pessoal e íntimo com Deus
Capítulo 7: Em Busca de Trilhos
Sofia caminhava lentamente pelo velho parque da cidade, donde as árvores se dignavam a cobrir o chão de frescor e cair um olhar nostálgico sobre as bancas vazias e os carrosséis adormecidos. A tarde era límpida, quente e repleta de sol como uma pintura de Van Gogh, e o tempo, obscuro, suspendia-se num fio tênue que delineava o horizonte num parto de sombras e esperanças.
Naquele dia, as Testemunhas de Jeová haviam convocado uma grande assembléia em comemoração ao aniversário da fundação de sua comunidade. Embora a filha rebelde já não fosse mais parte de sua grei, Sofia não pôde resistir à tentação de se aproximar do local para, de longe, ver com olhos de fênix e de coração de saudades o que acontecia naquela grande reunião.
Observando de trás de uma casa abandonada do outro lado da rua, Sofia teve uma visão panorâmica da casinha singela e pintada a branco, cercada por beleza e poesia, e sentiu um aperto no peito com a lembrança da vida que tinha deixado para trás. Ouviu, naquela tarde de outubro, os cânticos líricos e esperançosos que ecoavam dentro da casinha, e sentiu, como se fosse o aroma de rosa que ondulava no ar, a força e o encanto de um sonho que outrora fora seu refúgio e abrigo.
Por um momento, ela se sentiu sozinha e abandonada como um beija-flor que perdeu o néctar de sua vida, e um sentimento de orfandade invadiu seu espírito contrito de medo e dúvidas. Pensou em tudo o que acontecera desde que se desenfreada do antigo sonho e ingressara no doce e sombrio éden das insondáveis profundezas de sua alma. Afogada em seu desespero, Sofia se entregou à oração, àquela íntima conversação com o Senhor desconhecido e cada vez mais insinuante e misterioso.
- Senhor - sussurrou ela, os olhos fechados e nas mãos um terço improvisado com pedaços de rosas e pedaços de algodão - por favor, me mostre o caminho certo. Não me deixes perder a fé e a esperança em minha busca pela verdade, pela luz e pelo consolo de Teu conhecimento e Tua presença.
Enquanto orava, Sofia sentiu algo despertar dentro de si, uma chama abismal e radiante que desenhou, em sua alma, a estrela flamejante do ser. Seu coração estava tranquilo como um lago palmo a palmo com a noite, e Sofia percebeu que, talvez, ainda houvesse esperança para seu coração amargurado e sedento.
Naquele dia, como que impulsionada pela força sobrenatural de sua oração, Sofia descobriu a existência de uma igreja luterana na cidade. Curiosa e ansiando por novas experiências, decidiu-se a participar de um culto naquele domingo.
Chegou tímida e com medo, ruminando sobre o que a receberia naquela nova congregação. Mas, ao entrar no local de culto, descobriu-se voraz de alegria e esperança ante a simplicidade e o fervor que ali reinavam. Envolta em hinos trazidos pela brise de setembro, Sofia se permitiu arriscar-se à emoção e ao amor que emanava daquele lugar sagrado e universal.
Ao final da cerimônia, o pastor se aproximou com um sorriso em seus lábios finos e estendeu a mão a Sofia, apresentando-se como Antônio.
- Seja bem-vinda – balbuciou ele, em voz gentil e afável. – Fique à vontade para ficar e conversar sobre qualquer assunto que lhe interesse.
Alegre e hesitante, Sofia sentiu a chama interior reacender-se, como se a cada passo que dava ao encontro desse Deus desconhecido, ela se aproximasse, de fato, de si mesma e do âmago de seu coração e de seu espírito.
Em casa, sozinha em seu quarto, Sofia se recolheu em silêncio e se deixou bater como onda isenta de sargaço no cais prodigioso de sua alma. Percebendo a presença, agora mais nitidamente firmada, em seu coração, segurou a rosa estendida entre os dedos de sua mão aberta e deixou-se envolver pela sinfonia de silêncios e vozes em que Deus, em suas infinitas facetas e manifestações, se revelava à jovem alma peregrina e sonhadora.
E, entre o crepitar das estrelas e das vozes ancestrais de homens e de astros, Sofia se perdeu em si mesma e adentrou o infinito de um coração que, embora dolorido e ferido, nunca estivera tão próximo do Sagrado como naquela noite em que o olhar e os cabelos da Criação se fundiram em um único manifesto de amor e de criação.
O papel da meditação e da introspecção na jornada de Sofia
Capítulo 5: O Portal Interior
Era uma tarde de outono, quando o sol e as sombras dançavam uma valsa silenciosa sobre o tapete outonal de folhas marrons e douradas. Sofia se encontrava à beira de um lago sereno, onde patos e gansos solitários vagavam pelos reflexos do céu e das árvores engalanadas pelo vento.
Sentada sobre uma pedra, aconchegada pelo último brilho do sol, Sofia deixou-se inebriar pelas notas olfativas e visuais da natureza ao seu redor. Com as pálpebras cerradas, permitiu que seu coração esticasse suas mãos invisíveis e tocasse, com timidez e revolta, as teclas do piano da vida que há muito a chamavam para essa sinfonia inusitada de renúncias e encontros.
A meditação, esse coquetel tântrico de sabbaths e retiros, já não era novidade para Sofia. Desde que se despedira das asas soturnas da comunidade das Testemunhas de Jeová, Sofia aprendera a encontrar conforto e verdade nas práticas espirituais que, desde tempos imemoriais, vinham cobrindo os pés descalços e aventureiros dos buscadores e sábios deste mundo.
Nessa tarde morna, em que até os pássaros pareciam hesitar em entoar seus hinos de alegria e despedida, Sofia viu-se, pela primeira vez, verdadeiramente entregue aos braços carinhosos e líricos da comunhão com o Eterno. Sentiu-se, em sua nudez atemporal e eterna, vulnerável como Osíris antes do ritual de despedaçamento, valente como um samurai tecendo poemas diante do abismo.
E foi nesse estado de amor e abismo que Sofia sentiu a presença, outrora evanescente como espectro do sol, consolidar-se em um abraço tântrico e alavoado ao seu coração hesitantemente aberto e jubiloso.
- Aleluia - murmurou ela com os lábios crispados em êxtase e dor, permitindo que a canção de suas lágrimas e orações pintasse, no firmamento de sua alma, a miríade de estrelas e desejos que povoavam o cosmo de Deus e de sua criança perdida.
Foi nesse exato momento, quando o vara-pau do destino arremessou Sofia no turbilhão de criaturas celestiais e oceânicas, que, entre as margens e as nuvens de outono e poesia, surgiu a figura tímida de uma mulher descabelada e com olhos fatigados pelos milênios de espera.
- Sofia - sussurrou a mulher, seu tom eterizado pela brisa cúmplice e prometida do entardecer - vejo que você também está buscando o caminho do coração e do espírito. Posso te ajudar?
Sofia, hesitante, mas tocada pela suavidade e sinceridade respiradas no tom da desconhecida, permitiu-se envolver em um breve e fugidio abraço de esperança e memória. Encarou a desconhecida que, como uma serpente envolta em plumas de águia, levou-a aos abismos mais recônditos de sua alma e aos precipícios da aurora e do espanto.
Erguendo-se, com a graça de uma gaivota empoleirada no firmamento, Sofia abriu os olhos e descobriu-se em seu quarto, a música dos sonhos e da reconciliação sendo desfiada pelos raios de sol que varavam os vidros que a separavam do calor e do coração de suas inquietações e amanheceres.
Sabia, então, naquele instante em que as fronteiras de seu ser se tornaram diluídas e incertas como a ficção e a realidade dos poetas míticos, que sua vida, como a das ondas e das criaturas que nele habitavam e se afogavam, já não respeitaria as amarras do tempo e das certezas.
Ante a profundeza insondável dessa última metamorfose, Sofia, com o último brilho da lua e do mistério de ser, entregou-se de corpo e alma ao infinito e aos braços do Criador. Naquele instante, seu coração se revelou como uma fonte inesgotável de luz e de renúncia, capaz de transcender as reminiscências do passado e empreender, através da meditação e da introspecção, essa jornada incansável e pungente do coração humano à procura do divino.
A busca por uma nova comunidade espiritual
O sol já se escondia atrás das montanhas, tingindo o céu de um dourado ofuscante, quando Sofia chegou à porta da igreja Batista localizada na rua mais arborizada da cidade. Ao contrário das Testemunhas de Jeová, com suas reuniões fechadas e inflexíveis, a igreja Batista convidava moradores e turistas a entrarem para compartilhar da palavra de Deus. Sofia hesitava em dar mais um passo, sob o olhar penetrante de uma águia esculpida na fachada de pedra. Podia ouvir a presença silenciosa de Joaquim ao seu lado, um homem cuja existência efêmera e enigmática em sua vida havia libertado o espírito de Sofia da prisão da submissão e do dogma.
"Você não está sozinha", murmurou Joaquim, tão leve quanto a brisa que dançava no ar daquela tarde de outono. Confortada por suas palavras, Sofia respirou fundo e atravessou a soleira da igreja.
A pequena congregação, composta por pessoas aparentemente comuns, mas com olhos que brilhavam com a chama da fé, recebeu Sofia com abraços afetuosos e bênçãos sinceras. À medida que o culto progredia e as palavras do pastor desciam como chuva sobre seu coração ressequido, Sofia sentiu-se mais animada a iniciar sua busca por um novo lar espiritual.
Após a cerimônia, ela timidamente se aproximou do pastor, que carregava um sorriso bondoso e uma gentileza paternal. “Desculpe-me incomodá-lo”, disse Sofia. “Me chamo Sofia, eu gostaria de aprender mais sobre sua comunidade.”
Sofia ouviu atentamente enquanto o pastor falava sobre a missão da igreja Batista e as diversas atividades da comunidade: aulas bíblicas, trabalhos voluntários com crianças desamparadas e o cuidado com idosos da região. “Então, posso voltar para as próximas cerimônias?”, perguntou Sofia, timidamente. O pastor sorriu e disse: “Claro, Sofia! Você é sempre bem-vinda aqui."
Cada domingo, em sua trajetória agora ensolarada pela fé, Sofia explorava novas igrejas, ouvindo com reverência e humildade as celebrações da missa, orações em comunidade e sermões que ofereciam raios de esperança e compreensão aos corações dos crentes. Quando não estava em uma igreja, Sofia lia livros sagrados e manuscritos de tradições religiosas tão distantes quanto o judaísmo místico e a filosofia zen budista, buscando sempre a diversidade e a beleza de uma espiritualidade mais íntima com Deus.
Em suas caminhadas pela cidade, Sofia descobria ruelas estreitas com templos escondidos, onde ouvia as melodias exóticas de mantras em línguas ancestrais. E ao retornar para casa, Sofia fechava os olhos e sentia a energia de antigos mestres cujas palavras pareciam penetrar os véus do tempo e guiá-la à luz do conhecimento e da verdade.
A cada encontro com uma nova doutrina, Sofia reencontrava em seu coração aquele sentimento de comunhão com o divino que havia desejado por tanto tempo, mas frequentemente experimentava também uma tristeza crescente perante a intolerância e a incompreensão que ainda reinava entre as diferentes denominações religiosas. "Por que", Sophia perguntava-se à beira das lágrimas, "devemos insistir em delinear as fronteiras entre nós e os outros com base em preceitos e dogmas, ao invés de nos unirmos no amor e no desejo comum de buscar Deus?"
Nessa época de descobertas, Sofia começou a se corresponder com pessoas de diversas partes do mundo que, assim como ela, buscavam um relacionamento mais próximo e profundo com o divino. Juntos, enviavam periódicas mensagens de apoio, compartilhando textos sagrados e orações, e celebrando a diversidade e a beleza das tradições religiosas que haviam enriquecido suas vidas.
Enquanto Sofia caminhava pelas ruas iluminadas pela manhã, um vento fresco deixava espalhar-se, em remolino pela praça, um arco-íris de flores silvestres ignoradas pelo pé das gentes que, em sua "jornada", vislumbravam apenas o cair da noite e um amanhã tão igual ao passado como um sorriso que nunca se completou.
Fazia já várias semanas que Sofia se aproximava de sua nova realidade, quando deparara-se, na biblioteca, com o convite para participar de uma noite de diálogo inter-religioso. Sentiu seus olhos brilharem ao observar a lista de palestrantes, pessoas dedicadas ao estudo e ao entendimento às mais diversas tradições, unidas ali pelo desejo de compartilhar suas perspectivas e descobertas.
No dia do evento, coração acelerado, Sofia entrou na sala abarrotada de pessoas curiosas, alguns hesitantes, outros entusiasmados pelas palavras que ali seriam proferidas. Encontrou-se em meio aos rostos diversificados, uma miscelânea humana e lúdica de vozes e silêncios, de feixes de luz emaranhados por corredores de almas e sonhos.
Naquela noite mágica, que brincou com as chaves e os segredos da criação, Sophia sentiu as mãos invisíveis do destino amarradas em um laço eterno de encontros e separações, ouvindo os ecos melódicos das estrelas e das vozes ancestrais de homens e de astros que jamais entoaram uma canção menos sutil e plena do que a sinfonia de seu próprio coração.
Vivenciando a fé de diversas formas e aprendendo a lidar com a diversidade religiosa
Capítulo 7: O Encontro das Águas
Numa manhã nublada, o alegre som dos sinos ecoava pelas estreitas ruelas do centro histórico, chamando os fiéis à celebração dominical. Os devotos, engalanados nas cores e glamour da fé, aproximavam-se da velha igreja como um bando de pássaros atraídos pelo perfume e graça das flores silvestres que esperavam impacientes o beijo alado do sol e do matrimônio.
Sofia, em sua caminhada atemporal pela alameda de seu coração errante, misturava-se à multidão, vestindo sua armadura invisível de dúvidas e colorida com os enigmas e sonhos de Deus e de sua criança perdida. Caminhava resoluta e temerosa, como uma cruzada sob os olhos do Leão de Santo Agostinho, rumo à catedral do silêncio e do deleite.
Ao entrar esgueirada pela porta lateral, Sofia sentiu seu coração apertar-se de angústia e esperança, como um pássaro envolto nas mãos de um caçador arrependido e anelante. Deixou o olhar percorrer os corredores e santuários colaterais, onde santos e mártires viviam e morriam perpetuamente em afrescos e gestos extáticos, até pousarem no vulto enorme, colérico e iluminado do crucificado.
Sentiu-se, então, transportada às quimeras de sua infância, quando as histórias de Jesus e dos Santos despertavam em seu coração os sonhos de grandeza e sacrifício, de um amor e um perdão tão vastos como o próprio universo. Ansiava, em seu coração solitário e bifurcado pelas setas do passado e do começar, abraçar e ser abraçadapor aqueles corpos trêmulo e anguloso, tão distantes e vizinhos às penas e à beleza de ser e resistir.
Enquanto seu olhar diluía-se nas dobras de misericórdia e infinito do crucificado, que soprava sobre sua alma adormecida e desperta os segredos da eternidade e da serpente, Sofia deixou-se lenificar pelas melodias suaves e espirituais do órgão. Em cada nota, em cada vôo fugidio da música e das lágrimas, viajava Sofia pelos bosques e veredas de sua história, recolhendo dos escombros de sua juventude as relíquias amargas e doces do erro e do acaso.
- "Sois vós, meu Deus" – murmurou Sofia entre os lábios crispados de êxtase e dor -, "que me salvais e abandoneis nesta tormenta de meus anseios e delírios? Não ouvis minhas preces sinceras, minha súplica, que já não mais sabe qual caminho seguir, que alhambra desprender-se do abismo de vossas sombras e certezas?"
A resposta a este lamento de carne e mística surgiu com a delicadeza e pertinácia da brisa matutina, quando, de súbito, Sofia deparou-se com Pedro, Tânia e outros amigos daquele grupo espiritual que havia conhecido recentemente e que enveredavam, como ela, pelas trilhas e desafios do desconhecido e dos labirintos do desejo e do encontro.
- "Viestes aqui?" – perguntou Pedro com um brilho de amizade e compreensão no olhar – "Também já estive neste lugar, no limiar do tormento e da paz, naquele espaço confuso e contraditório onde o Céu e o Inferno se digladiam em versos e punhados de silêncio."
Sofia, olhos marejados de lágrimas e risos, perguntou com um lábio hesitante:
- "E como posso, Pedro, neste mundo fragmentado de verdades e equívocos, encontrar meu caminho, meu lar? Como posso amar e tolerar aqueles que, outrora e mesmo agora, pregam com arrogância e desdém a supremacia de sua fé e de seu Jesus e deixam, perdidos nos escombros de suas regras e dogmas, os corações e vozes das testemunhas de Pégaso e daqueles que, em nome do amor e da verdade, vivem e morrem à sombra das esquinas deste mundo?"
E foi Pedro, num gesto de ternura e sobressalto, que a fez compreender e sentir, como água driblando o leito das pedras, a intensidade e sutileza de um amor e de uma fé libertadora e inclusiva. Enlaçando os braços em volta do ombro de Sofia e Tânia, entoou um hino silencioso e sóbrio àqueles que haviam aprendido a fitar o Céu e o Inferno com igual deleite e prontidão e disse, com a sabedoria sôfrega e plena dos rios que deságua no mar e das fênix que renascem do próprio crepúsculo:
- "A arte de viver e amar, Sofia, aprendemo-la no encontro com os outros, no sorriso e no abraço efêmero e eterno dos que entenderam que a fé, como um mosaico de vozes, paixões e mitos, assemelha-se, em sua plenitude e perfeição, ao próprio encontro das águas, que, desde o princípio dos tempos, se misturam e se fundem num ciclo inexaurível de êxtase e renascimento."
Solidão e luta interior
A luz da lua atravessava a cortina de nuvens naquela noite solitária, refletindo-se melancolicamente no quarto de Sofia. Deitada em sua cama, seus ouvidos eram preenchidos pelo insistente barulho da chuva lá fora e o murmúrio de seus pensamentos. Apesar das novas amizades e das diversas práticas espirituais que agora faziam parte de sua vida, Sofia não podia deixar de sentir uma sensação de vazio. "O que estou fazendo de errado?", ela se perguntava em silêncio, enquanto as lágrimas deslizavam por seu rosto.
Com Madalena e a comunidade das Testemunhas de Jeová inacessíveis por causa de sua decisão e seus novos amigos apesar de compreensivos, mas carregados com seus próprios fardos, Sofia não conseguia evitar a solidão. Além disso, a luta interna entre sua educação rigorosa por um lado e a imensa sede de autoconhecimento e espiritualidade mais profunda por outro, deixavam Sofia à deriva.
Certa noite, através da chuva incessante, Sofia ouviu uma batida suave em sua porta. Apressadamente, ela enxugou as lágrimas de seu rosto e abriu a porta para ver quem era, esperando secretamente uma resposta para suas preces angustiadas.
No corredor, encontrou-se com o rosto cansado de Tânia, uma amiga que veio a fazer parte de sua nova vida espiritual. Ao ver as explícitas lágrimas de Sofia, Tânia a abraçou ao cruzar o umbral. “Eu vim te ver, tinhas esse ar tão triste," disse Tânia, sem conter suas lágrimas sinceras.
Ali, no acolhedor canto do quarto de Sofia, as duas amigas se sentaram juntas; amparando e encontrando conforto uma na outra. Sofia revelou a Tânia seus medos e angústias, a solidão que os atormentava, e o dilema entre sua busca incansável por respostas e a relativa paz de seguir sua criação religiosa.
Tânia, um porto seguro naquele momento de hesitação, compartilhou com Sofia sua experiência pessoal e o caminho de autodescoberta que a levou, por fim, a encontrar o equilíbrio entre o dogmatismo dos seus ensinamentos religiosos e a plenitude de uma espiritualidade flexível e adaptável a individualidade de cada pessoa.
Então, enquanto a chuva gradualmente se dissipava e uma paz emergia no coração daquela noite, Sofia falou com palavras honestas e corajosas: “Eu me sinto como um velho barco solto à deriva em um oceano desconhecido, com medo de naufragar entre os espinhos do passado e as águas turbulentas de um futuro incerto.”
“Todos nós enfrentamos tempestades em nossas vidas”, disse Tânia carinhosamente, acariciando a mão de Sofia. “Mas acredito que ao enfrentar o desconhecido e seguir a luz interior da nossa verdadeira essência, podemos encontrar o equilíbrio e a paz que tanto buscamos.”
Sofia sentiu que um novo horizonte se abria diante dela. “Devo continuar seguindo meu coração, seja aonde ele me levar. E talvez, um dia, na busca pelo equilíbrio, eu possa reconciliar meu passado com o meu presente.”
Tânia acenou com um sorriso franco e confiante e abraçou Sofia novamente. "Estamos juntas nessa jornada, Sofia. E acredito que, com coragem e amor, cada um de nós será capaz de superar nossas lutas e encontrar nossa própria luz no meio dessa tempestade chamada vida."
Naquele momento de conexão sincera e profunda, Sofia percebeu que, apesar das dúvidas e da solidão aparente na escuridão, ela não estava sozinha. Seu coração encontrava apoio nas palavras e na presença de Tânia, e em cada pessoa que encontrava ao longo de sua jornada, cada pessoa que compartilhava suas histórias de busca e superação, iluminando os caminhos sombrios e reafirmando a força da comunhão no amor. Sua solidão momentânea derretia-se como gelo no sol enquanto os dois corações conectados encontravam refúgio e esperança naquela mística amizade.
O vazio e a saudade da família
Capítulo 8: O Vazio e a Saudade da Família
Estendia-se sobre a cidade uma melancolia silente como a neblina que, pouco a pouco, descia do céu, ou talvez do firmamento de seu coração atormentado e renascido. Um outono madrugador chegava para reclamar a posse de uma terra sedenta de regatos e de secura, de lágrimas e de beijos, de morrerem e renascerem as flores dos jardins e das almas.
Sofia, ancorada nos laços de afeição e amparo de seu grupo de amigos, sentia desabrochar e extinguir-se em seu peito aflito e jubiloso, semelhante ao correr das horas e das nuvens, a dor e o consolo da ausência e do encontro, do lápis e das pinceladas de afeto e sabedoria que estampavam-se no livro inacabado e longe de sua unicidade e desencontro.
Contava, como um rosário em espiral e multifacetado, as perdas e os ganhos de seu corpo avistado e íntimo, os braços, abertos e fechados, de sua mãe Madalena, o olhar, gelado e abrasador, de seu pai, os rostos e gestos de seus amigos hoje distantes e repousados no álbum e no continente das Testemunhas de Jeová, que pareciam vê-la, em sua dança e tradição, como uma sombra esquiva e incerta, uma desertora da fé e da bendição de Deus e de sua cadeia de exultação e demandas.
Estava ela, em seu pequeno e solitário quarto, fitando o retrato de sua infância sorridente e fantasiado de castelo e de veredas silvestres, quando, atravessando a penumbra da memória e da saudade, ouviu uma voz conhecia e embalsamada de presságios e encantamentos ecoar pelos corredores e pausas de seu coração arquejante e plácido e, num repente, sentiu que o sofrimento e o abraço de seus pais continuavam lá, ocultos e sorrateiros por trás das portas e dos adágios da decomposição e do recomeço e, aos poucos, pareciam encurtar-se e tocar-se como a chuva e a terra, o arco-íris e o mito dos amantes eternos.
“Sim” – pensava Sofia – “eu os sinto pulsar e respirar dentro e fora de mim, como num constante duelo e reconciliação, como um poema e uma oração de estrofes desconexas e rímicas, de rostos ocultos e revelados que, no entrelaçar da tristeza e da complacência, formam um milagre e uma inquisição da vida e do eu”.
Fez-se então em Sofia, qual um raio atravessando o firmamento negro e povoado de vento e segredos, a decisão impetuosa e temerária de reencontrar-se com seus pais e com os ex-companheiros de seu templo e de sua juventude. Precisava ver, com seus olhos nus e plácidos, o rosto emoldurado de lágrimas e alegrias de Madalena, sua mãe heróica e humilhada, de espírito conciliador e doméstico, que vivia às margens do aleijão e da beleza e, assim, poder dizer-lhe, com a ternura e o assento de sua visão empoderada e penetrante, que sempre estaria ali ao seu lado, como uma filha, como uma peregrina da fé e do amor.
Na luz crepuscular de um entardecer de outono opulento e amargo, numa rua de paralelepípedos e ladeada de jacarandás em flor e esplendor, encontraram-se Sofia e Madalena, como duas folhas caídas de diferentes árvores e sopradas pela brisa e pelo destino ao mesmo leito de sombra e reconciliação. Cada uma, em seu silêncio e receio inconfessado, cocavada e envergonhada, procurava se aproximar da outra, travestida das cores e dos enigmas de seu amadurecimento e nostalgia.
- “Mãe” – balbuciou Sofia, enxugando as lágrimas de um ressentimento já tardio e evaporizado pelos ventos do afeto e das preces -, “depois de tanto tempo, quis o Deus de nossos passos e descompassos, de nossos abraços e torturas, de nossos gritos e sussurros, que nos encontrássemos neste recanto tão marcado pelas sombras e pelas luzes de nosso afeto e de nossa solidão”.
Madalena, mirando o rosto iluminado e cúmplice de perdão e de redenção de sua filha, murmurou, com um sorriso e uma lágrima de menina e de mãe:
- “Minha filha, embora não compreenda o teu caminho, sei que, em teu coração rebelde e amoroso, busca como eu mesma, como todos nós, ser tomada nos braços desta verdade e deste espírito que nos incendeia e nos consola neste exílio e nesta comunhão que é a busca pelo absoluto, pela encarnação da palavra e do abraço divino. Sigamos, pois, cada uma em seu rumo e seu mirar, sabendo e sentindo que, por trás das sombras e dos brilhos das flores, do silêncio e dos sinos, suspiram e renascem o colóquio e o vento insondável do amor e do já encontrarmo-nos”.
Nesse instante, as duas mulheres, quase como aurora e crepúsculo, fundiram-se e uniram-se ao horizonte que se desenhavava no caminho exuberante e secreto de seus corações e promessas, na certeza de que jamais estaríamos dormindo ou vagando nas trevas e nas distâncias, pois o calor insano e delicado da ternura e da compreensão preencherá e consolidará todos os abismos e as chamas desta solidão a que cedemos na saudade e na revelação de nossos sonhos e de nosso afeto.
Crises e incertezas na nova jornada espiritual
Capítulo 6: Solidão e luta interior
A chuva fina caía do céu cinzento, formando um véu transparente que enevoava a cidade. Pelas árvores ainda despidas do outono, pequenos brotos apontavam em meio aos galhos, sinalizando que a nova vida se abria caminho pelos resquícios do passado.
Sofia caminhava pelas ruas de pedra, sentindo o frio cortante mirrar sua pele e penetrar seus ossos. Procurava em vão relativizar seus pensamentos sombrios com o persistente fluxo e refluxo da chuva, que seguia a esculpir os caminhos tortuosos, assim como as dúvidas torturavam sua mente e cobriam suas horas de inquietude.
Apesar de todos os esforços do grupo de apoio, as palavras de Pedro, o olhar empático de Tânia e a estima silenciosa e reconfortante de Joaquim, Sofia não conseguia afastar de si o véu de incertezas que a envolvia. A vida pregressa se embrenhava em seu caminhar, melindrando a alma e tecendo um emaranhado de sombras e vazio – um estarte que, em sua busca por preencher as frestas de seu coração solitário, acoitava a fragilidade da jovem, enroscando-se em suas dúvidas e erodindo as pedras de seu espírito.
Na inquietação dessa noite gravemente serena, Sofia encontrou abrigo no iluminado café no centro da cidade. Lá, a aconchego da luz e o crepitar do fogo na lareira aqueciam seu corpo trêmulo enquanto ela rearranjava os pensamentos soltos, que flutuavam como pétalas silenciosas e úmidas estendidas pelo correr da chuva outonal.
Aproximando-se lentamente, um casal com olhares amorosos e idades avançadas se juntou às cadeiras próximas ao fogo. Vendo Sofia e os claros vestígios de angústia em seu semblante, a idosa estendeu a mão e com voz serena e quente indagou:
“Permita-me, minha jovem, você é aquela moça que deixou as Testemunhas de Jeová recentemente, não é? Soube que esta é uma fase particularmente desafiadora em sua jornada. Posso lhe oferecer alguma palavra de conforto ou conselho?”
Os olhos de Sofia se dilataram sob o impacto da pergunta, mas acalanto e familiaridade dos olhos da mulher estavam em chamas, como brasas acesas no coração cálido daquela madrugada. Hesitante e com voz entrecortada pela emoção, Sofia respondeu:
“Sim, sou eu. Agradeço sua gentileza, senhora. Sinto-me constantemente atormentada por dúvidas e incertezas, como se estivesse caminhando sobre uma corda bamba, equilibrando a tradição rígida e o desabrochar de minha própria espiritualidade.”
A mulher sorriu – um sorriso lento e sábio que carregava a compreensão e a paciência das eras. “Minha querida, todos passamos por crises em nossas vidas espirituais, em momentos de transição e transformação. Também já caminhei por esses mesmos vales escuros e sombrios e posso lhe dizer que, mesmo que pareça interminável e desesperador, é por meio dessa angústia que encontramos forças para florescer e crescer para além dos limites que tentam nos aprisionar.”
As palavras da mulher imbuíram Sofia de uma nova percepção – mesmo na solidão e incerteza, havia um propósito, uma razão pela qual sofria. O lento desenrolar das gotas de chuva em sua janela noturna ecoava a experiência purificadora que vivenciava, uma busca sedenta pela verdade a se desvelar nas dobras do desconhecido.
“Obrigada”, murmurou Sofia, sentindo o fio do aperto se desenredar no canto de seu coração. “Obrigada por me lembrar que, mesmo nas noites mais escuras e tempestuosas, a luz do amanhecer não está longe.”
“Nunca se esqueça disso, minha jovem”, respondeu a idosa solene e maternalmente. “Em meio à tempestade de incertezas e crises, busque dentro de si a chama de transformação – aquele brilho que se recusa a se extinguir. E quando suas energias se esgotarem, sempre haverá outras almas afinadas com as suas, prontas para apoiá-la em sua jornada com amor e compaixão.”
Com lágrimas deslizando por suas bochechas, Sofia, imersa nesse renovado senso de esperança e coragem, honrou o presente daquelas palavras imortalizadas no encontro com a idosa. No enlace de duas almas que cruzavam em meio à solidão e à dor, Sofia encontrou o vislumbre abençoado do ressurgir e do alento, verdadeiro prenúncio da força resiliente e onipresente do amor nos desertos da vida.
Autodescoberta e enfrentamento dos próprios medos
A cidade pulsava com a vitalidade do dia, mas Sofia avançava com os passos lentos e incertos típicos de sua alma em busca de claridade e calma. Sentia-se como pássaro tímido e trêmulo, acordes de música desafinada sob os ouvidos sábios do universo. Por vezes a incerteza cortou seu coração como faca em mãos de criança: lâmina de dor e medo iminente com a proximidade do fio do abismo.
Em seu retiro solitário no parque da cidade, Sofia procurava respostas às indagações que tinham a inevitabilidade de chuva em dia de tempestade. Logo que deixara as Testemunhas de Jeová e o manto rígido de suas crenças, experimentara a alegria da liberdade, a sede colorida do desconhecido. Entretanto, a novidade se mesclava aos medos costumeiros com a solidez e liquidez do musgo em velhas paredes de casario. A possibilidade de ferir-se na profundeza das emoções desconhecidas batia com a força de um vento sorrateiro, assanhando as chamas da dúvida e da insegurança.
Encontrada em meio aos galhos crestados das árvores e à carícia das folhas que se desprendiam em uníssono na brisa, Sofia sentia a quietude iminente tomar conta de seu peito. Seu coração, menestrel em busca de acordes etéreos, ameaçava se despedaçar em lágrimas de coral e madrepérola. Ansiava por uma resposta, uma fagulha que iluminasse o caminho desconhecido que se desenrolava diante de seus pés calosos e cansados.
Nesse momento, uma voz soturna e melodiosa ecoou pelo parque, sussurrando palavras de sabedoria e conforto. Inebriada pela harmonia ímpia, Sofia não pôde evitar a entrega a essa melodia estranha que parecia arrulhar um segredo, um conhecimento profundo e insondável que desabrochava lentamente dentro do seu âmago.
"Não tenha medo, minha jovem." A voz parecia encarnar a serenidade e a inquietação multifacetada das águas vivas que corriam indignadas por sua dor. "As dores e os medos são parte fundamental de nosso crescimento, os obstáculos que preenchem as lacunas e as potências do nosso ser."
"Aprenda a entendê-los e a acolhê-los como pedras preciosas em uma coroa de sabedoria e compaixão." A voz grave adquiriu a ternura rara das mãos em prece, das palmas em toque de afeto e aurora. "Não permita que o desconhecido se torne um espectro de angústia ou de fraqueza. Deixe que o medo seja seu companheiro, seu sinalizador, o alerta que traz à luz as profundezas ocultas de sua alma."
Sofia, tocada por essa manifestação onírica e harmoniosa, irrompeu em lágrimes, mas essas lágrimas não traziam consigo a dor ao desamparo das noites incompreendidas. Eram lágrimas de alívio, de libertação, de transmutação do sofrimento em resiliência e em domínios sutis do ser.
"Obrigada", sussurrou Sofia, como quem escancara as portas de sua alma para o desconhecido e misterioso poder da renovação e da harmonia. Aquela voz lhe ensinara o valor da autodescoberta e do enfrentamento dos próprios medos como parte do processo alquímico que lhe renderia a chave da liberdade interior e da conexão com o divino.
Sentada entre raízes emaranhadas e folhagens em murmúrio constante, com olhar fixo no lago diáfano e iridescente aos últimos lampejos do sol, Sofia entendeu em seu coração e mente como uma árvore enraizada na terra, majestosa em sua inércia e poder, que o medo que antes a aprisionava seria a mesma força que permitiria que ela se libertasse de suas correntes e amarras – uma força a ser domada e explorada, como as ondas momentâneas de um litoral escuro e erodido pela tempestade.
Nesse momento, com o coração inflamado pelo otimismo selvagem e uníssono com as águas desta liberdade imponderável e ímpar, Sofia se levantou e viu-se pronta para enfrentar os desafios do caminho desconhecido e inabitado do amanhã, com a convicção de que seus medos, outrora definidores de suas existência, se converteriam em remédios e em poesia a lhe impulsionar ao encontro de si mesma e ao infinito sugado e revolto de sua eternidade imensurável e reverberante.
A busca pelo equilíbrio entre razão e espiritualidade
Juan entra na biblioteca comunal, a maior do típico vilarejo do interior. São seus passos carcomidos pelo cansaço tantas noites negativas que marcam as salas da vida, mas é seu coração iluminado que sente e resvala nas paredes de si uma sede nova e incontrolável de fonte cristalina ao quentame das perguntas faiscantes em sua mente inquieta. Ao folhear um livro de filosofia com calma e concentração invertebrada, percebe como o salto para libertar a sua alma das algemas das Testemunhas de Jeová fora apenas o primeiro passo de uma jornada onde o desconhecido se revelava diante de seus olhos.
Juan, míope, vinha buscando o equilíbrio entre a razão e a espiritualidade desde sua posterior despedida das Testemunhas de Jeová. Em cada canto desse terreno etérico e senil, ele sentia os ossos do conflito se esguicharem, vivos, a se misturar em uma eterna dança de angústia e êxtase. Sabia que, de alguma forma, precisava encontrar um ponto de equilíbrio, um encontro ardente e pacífico na bruma infinita do desconhecido.
Envolvido em idéias e aflições, Juan percebeu um movimento no canto de uma das salas cheias de livros. Ali, recostada no parapeito da janela, prestando iluminação rara neste mundo distraído, com cabelos serpentinos neonegros esgueirando-se através do brilho dourado e emoldurando seu rosto angélico, estava Sofia.
“Não deveria estar surpreso em encontrá-la aqui, dentro da biblioteca, entre os sulcos da sabedoria em folhas envelhecidas”, disse Juan, com um sorriso no rosto.
Sofia levantou o olhar com calma e receptividade projetada no olhar e sorriu, enquanto em um suspiro concordou.
“Também procuro algo aquém das contradanças entre a razão e a fé”, falou sofregamente para ela mesma, como um segredo que se escapa por entre bordões e glissandos de harpas celestiais. “De algum modo, sinto que preciso de encontrar o equilíbrio no meu próprio caminhar."
Juan sentou-se ao seu lado e, em silêncio, contemplou a vista panorâmica defronte às suas almas sofridas: as montanhas ao longe, tons degradados de azul sob a luz crepuscular, precedida por vasto e magnético campo de verdejante pasto e sonho, animado pelos laivos e mogitos de uma fauna eclética e submissa.
“Talvez a resposta para nossos próprios desafios esteja aqui, Sofia, diante de nossos olhos. Nessa vastidão de beleza e razão, embalada e postergada pelo amor invisível e incondicional de nosso Criador."
A epifania emergiu como fagulha poética na mente de Juan, e Sofia encontrou-se profundamente comovida pela perspectiva lançada como lança fustigada no peito em agonia. Naturais, eles sentiram a reverberação de sua busca e a dissonante harmonia se ordenou, em sua redução, como partitura celestial para duas almas aflitas em busca de síntese e luz.
Eles permaneceram ali, sentados lado a lado na borda do tempo e da eternidade, compartilhando olhares e sorrisos envergonhados enquanto ubi sunt de seus pés lentamente a esculpir o caminho que percorreriam juntos, em busca da razão e espiritualidade, de mãos dadas com a luz e a sombra, dançando ao encontro do divino em formoso campo de autodescoberta e plenitude.
Foi então que Juan sorriu, voltou-se para Sofia e sussurrou, iluminado pelas brasas fulvosas de um pôr-do-sol em chama: “Tenho algo a compartilhar contigo, meu amor. É um segredo que descobri nos braços cintilantes da escuridão noturna, alicerçado por estrelas e rumorea-se em meu coração como um cântico silente e implacável.”
Sofia, os olhos em sinceridade levemente febril, buscou acalanto no olhar peremptório de Juan e, em uníssono, permitiu que o segredo fosse desvendado entre ambos, como cabo onírico do destino em entrelaçamento perpétuo e multicor entre os espinhos e as rosas do mistério celestial, onde a razão e a espiritualidade se fundiam em oferta sagrada de amor ao próximo e a si mesmo.
Encontrando conforto na meditação e na conexão com a natureza
A estrela solitária da tarde cintilava como um farol enamorado pela luz que teimava em desvanecer no poente. O sol derradeiro, já inseguro em sua promessa de ressurgimento, lançava seus raios lânguidos através do arvoredo que se estirava, cansado, no parque onde Sofia se refugiava.
O caminho que percorrera até então, marcado por suas pegadas vacilantes e hesitantes, residia agora como uma sombra serpenteando em seu coração. Os ecos do passado religioso, recusando-se a desaparecer como ondas marulhando na quietude de um litoral incerto, batiam em seu peito como um tango trêmulo e inacabado. As vozes de sua família, dos amigos que deixara para trás e do Deus do rigor que aprendera a temer em vez de amar, soavam como notas surdas de um piano abandonado às intempéries da vida.
Sofia, enfraquecida pela culpa e pela busca contínua por um relacionamento mais profundo com o divino, sentiu a alma se contorcer em lamento silencioso. Em sua mente, o fio tenso do equilíbrio entre a fé e a razão se desgastava, vulnerável às dúvidas persistentes e aos medos sombrios.
Convocando suas forças e esperanças mais profundas, Sofia fechou os olhos e entregou-se à meditação que tanto praticara. Inspirava lentamente e, de olhos cerrados, sentia o ar que entrava e saía de seu corpo em um abre-e-fecha que expeliria também seu devaneio fino e cortante.
Nesse momento sublime, a conexão com a natureza se fazia presente e ressonante, em um coral de ventos e folhas, de raízes salientes que lhe acolhiam e abraçavam seu ser, água borbulhando como lágrimas em correnteza límpida e serena. Os sons e aromas da terra se misturavam, fundiam-se e acariciavam todas as fibras de seu ser, acendendo a chama cintilante da esperança e da renovação.
De repente, como um sussurro entre as árvores, uma suave voz invadiu os pensamentos de Sofia. Seria uma invasão, um murmúrio do vento? Não, estava cada vez mais claro e próximo, como o rumor coerente e palpitante do próprio coração.
"Sofia", chamava a voz, vívida e límpida como uma fonte abençoada. "Não se deixe levar pela culpa e pela tristeza. Você é uma filha adorada do Criador e minha irmã na luz. Permita que seu coração se abra à compaixão e à sabedoria que residem em sua natureza divina."
"Sinta-se acolhida e amparada pelas árvores e flores e pelas águas frescas que correm impávidas e livres. Todo o pulsar e latir de cada folha e pedra é uma confirmação de seu propósito e lugar neste mundo."
A voz parecia vir de todos os cantos da terra, como a manifestação de todas as estrelas e raízes unidas em estafeta cósmica para abonar sua alma suplicante. Sofia permitiu que as palavras se entrelaçassem e fundissem com seu coração.
"Meus medos são como nuvens carregadas que obscurecem e pesam sobre minha alma", confessou Sofia com voz embargada. "Tempestades internas que me arrastam e me separam do Eterno e do meu verdadeiro eu."
"Lembre-se, Sofia, que as tempestades também fazem parte da natureza infinita e divina. Mesmo as nuvens negras e os ventos revoltos trazem consigo a promessa de renovação e transformação."
"Sinta a mistura de sua própria dor e esperança ao pulsar das árvores, ao bater das asas das aves e ao cantar do vento. Deixe que a alegria pura resida em sua alma e desbanque as nuvens escuras e a dor que anseiam por vencer."
Com o coração aberto e vulnerável como um horizonte alagado na alvorada, Sofia permitiu que a paz e o conforto da natureza penetrassem e se instalassem em sua alma ansiante. Com olhos marejados e almas aliviadas, ela experimentou um instante de comunhão com o universo e com o Deus que habitava dentro e fora de si.
Em um lampejo de gratidão, Sofia entendeu que a natureza era um espelho mágico e transcendental, uma extensão e encarnação do próprio divino, que conhecia e compartilhava de suas lutas e triunfos, de suas dores e alegrias. A busca incansável pelo equilíbrio e harmonia, guiada pela sabedoria eterna e o sacrifício de si e dos outros, era parte integral do Grande Plano, do aprendizado e avanço dos seres humanos em relação ao infinito, à comunhão celestial.
Superando a solidão: fortalecendo os laços com a nova comunidade espiritual e com Deus
Capítulo 6: Solidão e luta interior
Sofia conhecia bem a solidão. Ela existia em seus ossos antes mesmo de ter nome. E, conforme a distância crescia entre ela e a comunidade das Testemunhas de Jeová, a solidão expandia-se e espalhava-se como um veneno pelas veias de Sofia; um véu línguido e sonâmbulo que descendia sobre seu coração, noturno e obscuro. Entre o mundo que conhecera e aquele que perseguia, havia um vale silencioso onde Sofia se encontrava perdida, peregrina do desconhecido.
Mas então, como um raio de sol após um dia de chuva, um campo de rostos desconhecidos e braços abertos se ergueu diante de Sofia. Eram homens e mulheres que buscavam a mesma luz que ela; porém, cada qual com suas próprias cicatrizes e histórias. Eram almas que caminhavam pela vida com a cabeça erguida e o coração honesto, aberto a possibilidades e ao aprendizado.
No abraço desse círculo de almas desgarradas, Sofia encontrou uma nova família e um verdadeiro sentido de pertencimento. Aqui, as dúvidas não eram vistas como negativas, mas como trampolins para a descoberta. Aqui, a diversidade era abraçada, e o diálogo precoce entre as várias tradições religiosas e espirituais fortalecia a compreensão e o amor mútuos.
Sofia começou a participar regularmente das reuniões dessa pequena comunidade, envolvendo-se em atividades que nutriam seu coração e sua mente. E assim, a solidão que tanto a oprimira começou a esvair-se, dissipada pela luz da companhia e da amizade. Deus também se tornou mais presente quando acompanhado pelo apoio de iguais; uma presença cintilante que envolvia cada momento, cada conversa, cada prece.
Certa noite, após uma longa e estimulante discussão sobre a relação entre a sabedoria e a humildade, o grupo despediu-se, e Sofia se viu caminhando sozinha pelas ruas desertas e iluminadas apenas pelos postes e pela lua. Involuntariamente, ela pensou em sua família e nos amigos que havia deixado para trás, e uma tristeza líquida tomou conta de seu coração.
Parando para recuperar o fôlego sob a copa de um flamboyant, Sofia deixou que as lágrimas escorressem por seu rosto, feito chuva fina e tardia. Aqui estava ela, uma mulher adulta, independente e jovem, e ainda assim a vulnerabilidade que experimentara quando confrontou sua família parecia continuar a carcomê-la por dentro.
Foi então que uma voz suave, carinhosa como a brisa, alcançou seus ouvidos. Virando-se, Sofia percebeu a figura de Joaquim, encostado na sombra de uma loja fechada. Ofereceu-lhe um tímido sorriso, um lembrete dos tempos e das dores que compartilharam.
"Sofia", Joaquim murmurou, como um segredo entre eles, "não permita que a tristeza do passado te afogue ou te prenda. Você forjou um novo caminho, uma jornada que não exclui a lembrança daqueles que ama, mas sim transforma a dor em saudade e esperança."
"No abraço desta comunidade e na luz de Deus, renovamos nossos corações e redimimos nossas almas, dia após dia", continuou Joaquim. "E daqui, podemos estender uma mão de compaixão e de convite àqueles que ainda se debatem nas correntes da rigidez e do medo. Não para forçar uma mudança, mas sim para oferecer um caminho alternativo, uma possibilidade de transformação e renovação."
Sofia então encarou Joaquim e sentiu a força e a verdade de suas palavras. Juntos, de mãos dadas, retornaram à companhia dos amigos já reunidos, sentindo o calor da comunhão que emanava daquelas almas. Enquanto Sofia ouvia os risos e o burburinho animado das vozes, sentiu-se verdadeiramente grata por ter encontrado este novo lar, onde podia simultaneamente buscar a Deus e enlaçar-se com os outros seres humanos.
Não, a solidão nunca desaparece completamente, assim como as dores e as cicatrizes do passado. Porém, com fé, amor e o apoio da comunidade, Sofia aprendia a superar e transformar o próprio abismo, encontrando a esperança um dia de cada vez.
A busca por um relacionamento verdadeiro
O hálito de uma manhã indecisa perpassava pelos corações e desejos ainda adormecidos. Dentre os raios cintilantes que tateavam as cortinas de algodão branco, irradiavam-se os anseios de um novo despertar. O tempo, outrora a languidez de um passado sombrio e medroso, transformara-se em fascinantes arestas a serem desdobradas e exploradas.
Sofia, com coração pulsante de ânsias e esperanças, levantou-se lentamente e empurrou a janela de seu quarto. Ali, naquele instante fatídico, o céu se desvelava em ondas de tonalidades irisadas e as primeiras canções dos pássaros despontavam como notas numa partitura de luz.
Era um pressentimento, um prenúncio, intuía Sofia: teria chegado o momento de aprofundar-se na busca por um relacionamento verdadeiro com a divindade que lhe escapava como névoa em seus dedos extendidos. Desprendida de amarras e solitários anilamentos, ela sentia-se pronta para se lançar ao arrebatamento de um amor complexo e inefável.
Buscando compreender a essência do amor divino, Sofia voltou-se para aqueles que a cercavam na comunidade que abraçara e transformara como seu próprio ser. Ouvia com avidez as experiências e anseios de seus novos amigos, atenta aos detalhes, às cores e aos sopros que emanavam de suas narrativas e clamores.
Foi num desses encontros, regados à partilha e à busca mútua, que Sofia conheceu Renata, uma mulher que brilhavam como um raio de sol entre penumbras. Carregava consigo uma centelha divina, um fulgor intenso que tocava o coração de quem a envolvia. Aproximaram-se como aves que se congregam ao redor de uma fonte, atraídas pela água límpida que entremeia suas pedras.
- Renata, eu lhe pergunto: é possível amar a Deus de um jeito novo? - indagou Sofia, trêmula na ousadia de tal questionamento.
Renata sorriu e, ao fitar os olhos de Sofia, pareceu enxergar-lhe todas as angústias e anelos que se entrelaçavam em sua alma. Acercou-se mais, como quem se aproxima de um abismo quase desconhecido, e sussurrou:
"Sofia, querida, a busca por um verdadeiro relacionamento com Deus se assemelha à jornada eterna e fragmentada de um caleidoscópio. Não há realmente um jeito novo de amar, mas sim uma coragem e uma vontade de se deixar levar pela beleza e pelos mistérios infindáveis que palpitam em cada virar e em cada luz."
Sofia encarou Renata, e a verdade que enxergou naqueles olhos que lhe acariciavam os anseios foi como um chamado ao despertar e à renovação do seu compromisso com o amor divino.
Desde aquele momento, Sofia passou a contemplar o amor pelo divino como uma sinfonia diáfana e infinita, repleta de nuances e harmonias que transcendem a finitude de suas experiências anteriores. Imersa no abraço dessa nova comunidade, Sofia sentia-se fortalecida e inspirada pela vulnerabilidade e pela busca por um amor verdadeiro e autêntico.
No entanto, foi num encontro casual com Diego, um jovem de sorriso fácil e amparo que emanava seus olhos profundos, que Sofia descobriu a face humana emaranhada na conexão com o divino. Ele trazia consigo a leveza e a simplicidade de um amor vivido a cada gesto, a cada palavra e a cada olhar. Era o Amor encarnado, ressoando em cada instante e a cada sussurro.
Juntos, Sofia e Diego lançaram-se à aventura extasiante de compartilhar suas vivências e anseios, dando nomes às inúmeras facetas do amor que os envolvia e os transformava. Juntos, descobriram na intersecção de corpos e almas o espelho do divino que se esconde no abismo de cada ser humano.
Era, como Diego descrevia em sussurros entre beijos e carícias, "o amor que deriva da sintonia com a melodia de uma estrela distante, do entrelace das mãos que buscam se ancorar no coração de um oceano invisível".
E assim, ao se perderem um no outro, Sofia e Diego vivenciaram a plenitude do amor divino através da vulnerabilidade humana, desmantelando em uníssono as barreiras que separaram os amores humanos dos celestes. Pela primeira vez, Sofia sentiu-se completa – uma mulher imersa em um relacionamento verdadeiro e autêntico com a Divindade, sem medo das etiquetas e restrições de um caminho espiritual rígido.
Desafios e tentações no novo caminho espiritual
Capítulo 7: A busca por um relacionamento verdadeiro
Sob a vastidão estrelada se encontrava Sofia, imersa em um mar de preocupações intensas e intensivas. A trilha pela qual trilhava parecia ser repleta de pedras e tropeços. O orgulho de um novo caminho espiritual dava lugar, em certa medida, a uma constante luta interior entre a sombra do passado e os desafios do presente. Temores, incertezas e, acima de tudo, tentações ameaçavam desequilibrar sua jornada em direção a um relacionamento mais profundo e verdadeiro com o divino.
No entanto, Sofia encontrava-se inesperadamente unida a um grupo de homens e mulheres com causas e dores semelhantes - um murmúrio avassalador que, embora proporcionando conforto e camaradagem, também trazia à tona suas próprias fragilidades e desejos mais secretos.
Sentados na grama úmida, os membros do grupo compartilhavam suas histórias e buscavam apoio e conselhos uns dos outros. De repente, Sofia sentiu uma mão quente e reconfortante sobre a sua.
- Sofia, você não precisa enfrentar isso sozinha - disse Joaquim em um sussurro que dissipava a escuridão a seu redor. - Temos todos sido tentados e provados de alguma forma.
- Joaquim, eu sou da natureza pecadora - declarou Sofia, enquanto seus olhos tremeluziam como as estrelas acima. - A tentação me chama, e eu temo não ser capaz de resistir a ela.
Joaquim a envolveu gentilmente em seus braços e contemplou o infinito celeste.
- O caminho para uma conexão verdadeira e autêntica com o divino passa, inevitavelmente, por provações e tentações, Sofia. Ao enfrentar e superar as adversidades, pode ser que alcançamos as profundezas da espiritualidade que outrora pareciam inatingíveis.
Naquele instante, a figura de Pedro emergiu das sombras, seus olhos brilhando com uma luz que parecia nascer de experiências passadas e futuras. Ao se aproximar, compartilhou suas palavras com Sofia:
- A tentação é o fogo que nos molda e aperfeiçoa, Sofia. Aprender a resistir a ela é a chave para a verdadeira liberdade espiritual.
Sofia olhou para Pedro, sua expressão melancólica marcada pela luta interior que se desenrolava dentro de si.
- Mas como posso resistir à tentação quando ela parece tão irresistível? - questionou Sofia.
Pedro sorriu, como se entendesse o turbilhão de emoções e desejos que Sofia enfrentava. Estendendo a mão, ele a convidou a se levantar e se unir aos outros membros do grupo, que agora formava um círculo de braços entrelaçados e corações vibrantes.
- A força para resistir à tentação vem da comunhão com os outros e de nossa conexão com o divino. Juntos, podemos enfrentar nossos demônios interiores e aprender a caminhar no caminho da verdade e da justiça.
Neste círculo de almas desgarradas e corações curados, Sofia sentiu uma força interior se avolumar dentro dela, capacitando-a a enfrentar as tentações e desafios de sua nova jornada espiritual. Lentamente, ela começou a acreditar que era possível transcender a dor e as cicatrizes de seu passado religioso, encontrando, a cada novo dia, a esperança e a fé necessárias para construir um relacionamento mais profundo e verdadeiro com Deus.
Era como se Sofia, em meio à efervescência e união de corações e mentes, percebesse que as tentações que lhe rondavam não eram apenas suas, mas compartilhadas pela humanidade inteira - uma prova comum à qual todos se submetem na busca por um relacionamento completamente íntimo com o divino.
E, naquele momento, Sofia agarrou-se à esperança, permitindo que as trevas se dissipassem, dando lugar a uma luz celestial que iluminava seu caminho rumo ao divino. Por fim, Sofia aprendeu a atravessar o fogo da tentação e emergiu dele mais forte, mais clarividente e, acima de tudo, mais próxima de Deus e de si mesma.
Aprofundando-se na meditação e na oração pessoal
Capítulo 7: A busca por um relacionamento verdadeiro (continuação)
As folhas das árvores balançavam suavemente na brisa fresca da tarde, enquanto Sofia se ajoelhava no gramado macio e fechava os olhos. Joaquim lhe havia ensinado uma técnica simples, mas poderosa, para aprofundar sua prática de meditação e oração pessoal. Ele lhe dissera que o cerne de qualquer relacionamento com o divino residia na capacidade de ir além das palavras e dogmáticas, e realmente ouvir e sentir o silêncio interno e sagrado.
Naquela tarde, Sofia desejava acima de qualquer coisa tocar e explorar a essência do divino, para encontrar conforto e orientação no vazio que seu passado havia deixado. Sentindo a grama úmida sob seus pés, ela começou a respirar profundamente e lentamente, deixando que o som das folhas se misturasse com o fluir de suas lágrimas.
Enquanto sua mente se esvaziava dos pensamentos ansiosos que a afligiam, Sofia tinha a clara sensação de que o divino a envolvia em um abraço caloroso, fazendo com que seu coração se aquecesse apesar das sombras que ainda a perseguiam.
Ela continuou a mergulhar cada vez mais fundo nesse abraço celestial, até que a voz suave de Joaquim surgiu em sua mente.
"Sofia, estar aqui é permitir-se ser verdadeiramente tocada pela presença divina. É um espaço sagrado onde suas lágrimas e risos, medos e esperanças, podem se misturar e se transmutar na profunda aceitação e compreensão do divino. E é aqui que você vai encontrar a força para romper as barreiras que lhe foram impostas."
A voz de Joaquim ecoou em sua mente, e Sofia foi mais uma vez lembrada de sua luta para encontrar equilíbrio entre a razão e espiritualidade. Por mais que tentasse, ela ainda se sentia desconfiada e temerosa em relação à sua própria capacidade de transcender as amarras e construir um relacionamento verdadeiro e autêntico com o divino.
Estava ela verdadeiramente preparada para libertar-se do passado e abraçar a imensidão do amor divino?
Aos poucos, Sofia começou a perceber sua própria resistência à comunhão com o divino e ficava granítico seu coração diante da dor, mágoa e desconfiança. No entanto, conforme se aprofundava mais profundamente em sua meditação e oração, as sombras do passado começaram a dissipar-se, dando lugar a uma paz indescritível e um sentido de comunhão com o divino que fluía em sua alma e envolvia-a.
"Eu estou aqui, divino. Estou aqui, com todo o meu coração, desistindo das próprias amarras. Estou aqui para verdadeiramente me permitir ser amada por ti", sussurrou Sofia em sua mente, como se estivesse falando diretamente com o divino.
De imediato, como se respondesse a seu chamado, Sofia sentiu um pulso de energia correr por todo o seu corpo, aquecendo seu coração e suas veias e dissipando a névoa de temores e incertezas. Ali, de joelhos no gramado, Sofia sentiu como se pela primeira vez na vida estivesse verdadeiramente em comunhão com o divino – um amor tão profundo e incondicional que fez com que suas próprias feridas começassem a cicatrizar.
Levantando-se lentamente do chão, Sofia olhou em volta e contemplou o sol poente que iluminava o céu em matizes de ouro e vermelho. Com cada passo que dava em direção à casa, ela se sentia mais forte e renovada, pronta para enfrentar os desafios que ainda a esperavam nesta jornada recém-descoberta em busca de um relacionamento verdadeiro e autêntico com o divino.
Movida pela profunda aceitação e compreensão do divino que se aninhava agora dentro de seu ser, Sofia soube que agora possuía a capacidade de transcender as amarras e construir uma vida de amor e verdadeira comunhão com o divino. Coube a ela, então, continuar seguindo adiante, confiante de que o amor divino estava, sempre esteve e sempre estaria ao seu lado, guiando-a para o despertar espiritual e o encontro com a verdadeira natureza do amor.
E assim, com cada novo passo e cada nova respiração, Sofia tornava-se a perfeita síntese de tudo que viveu, tudo que conquistou, e tudo que ainda estava por vir em sua busca por um relacionamento verdadeiro e autêntico com o divino.
A busca por aconselhamento e modelos espirituais
- O encontro com Marta
Era uma tarde abafada de verão, as cortinas da discreta sala de leitura da biblioteca comunitária estavam fechadas para preservar a atmosfera fresca proporcionada pelo ar-condicionado. As altas estantes de carvalho repletas de livros cercavam os frequentadores do local como sentinelas silenciosas, guardando assim os conhecimentos do passado, enquanto alimentavam as mentes curiosas do presente.
Sofia estava sentada em uma confortável poltrona, com os olhos buscando avidamente as palavras na página de um velho exemplar do livro "O Profeta", de Khalil Gibran. Ela era cativada pelos escritos desse poeta e filósofo libanês que, apesar de ter vivido e morrido em um momento e local distantes de sua existência, parecia falar diretamente com os anseios e inquietações mais profundos de seu ser.
Joaquim, que circulava pela biblioteca em busca de algum livro de teologia mística, ergueu a cabeça por um momento e observou a cena com um sorriso no rosto. Ele sabia o quão importante eram esses momentos de leitura para Sofia, uma oportunidade para explorar um mundo de ideias, pensamentos, e crenças que se estendiam além das estreitas fronteiras de sua criação religiosa.
Para Sofia, cada autor que lia parecia ser um canal entre ela e o divino, um toque do sagrado em meio ao caos e à incerteza do mundo lá fora. E, todavia, também pareciam ser apenas uma pincelada desse vasto e complexo tecido que compunha a realidade espiritual. Quantos outros sábios, profetas e místicos brilhavam como estrelas distantes na tapeçaria da criação? Quantas outras vozes carregavam ecos da sabedoria eterna desses seres iluminados, esperando para serem descobertas e assimiladas por almas ardentes como a sua?
Sofia, envolvida em seus pensamentos, levantou-se da poltrona e começou a vagar entre as estantes. Seus olhos deslizavam por títulos de livros, alguns familiares, outros desconhecidos. A seção de espiritualidade e religião sempre a fascinava, e ela muitas vezes passava horas ali, imersa em leituras sobre diferentes tradições e filosofias.
No entanto, percebeu em seu coração a necessidade de encontrar um guia espiritual, alguém que já tivesse percorrido o caminho árduo da dúvida e da busca e que fosse capaz de ajudá-la a encontrar seu próprio caminho. Ela já tinha Joaquim, que se mostrava um amigo e companheiro inestimável, mas sabia que, em algum momento, deveria buscar outras fontes de sabedoria para evoluir ainda mais em sua conexão com o divino.
Foi então que Sofia avistou uma mulher, com cabelos prateados e uma postura serena, vasculhando as prateleiras com um olhar encantado e curioso. Embora a imagem da mulher fosse estranha para ela, algo em seu coração dizia a Sofia que aquela pessoa poderia ser a guia espiritual que buscava.
- Com licença, senhora. Desculpe a intromissão - disse Sofia, aproximando-se com um sorriso tímido e ansioso no rosto. - Eu não pude deixar de notar sua presença aqui, e sinto que talvez possa me ajudar em minha jornada espiritual.
A mulher, levantando o olhar do livro que segurava, estudou Sofia por um momento e então sorriu suavemente.
- Meu nome é Marta, e embora eu não me considere uma especialista em tais assuntos, sou uma buscadora da verdade assim como você. É sempre bom encontrar alguém que esteja interessado em ouvir e aprender uns com os outros - respondeu a mulher, sorrindo.
À medida que conversavam, Sofia percebeu que Marta, uma mulher mais velha e cheia de sabedoria e experiência, poderia ser a pessoa pela qual ela ansiava conhecer - alguém que, como ela própria, tinha trilhado um caminho tortuoso e intrincado em sua busca por iluminação e conexão com o sagrado.
Sofia convidou Marta a fazer parte de seu grupo de amigos – um círculo de almas carinhosas, entrelaçadas por suas experiências e destinos comuns. Com cada reunião e conversa, Sofia e seus amigos mergulharam mais profundamente em seus anseios e medos espirituais, compartilhando suas histórias e descobertas, e atravessando as névoas da ignorância e do preconceito que antes os cegavam.
Ao lado de Marta, que embora relutante em se autodenominar uma guia espiritual, oferecia atenciosa o auxílio de seus anos de estudos e práticas em diversas tradições, Sofia foi capaz de enfrentar as frustrações e dúvidas que ainda a assolavam na caminhada em direção ao divino e, sobretudo, ela sabia que não estava mais sozinha nessa busca.
Com cada novo encontro, a comunhão desses corações pulsava com as batidas do verbo sagrado, mostrando a Sofia que a verdade, embora multifacetada e complexa, poderia ser encontrada - e que ela estava a apenas um passo de alcançá-la com a ajuda de seus irmãos e irmãs espirituais, comprometidos com o amor e a beleza da criação que unia a todos eles, intangível, mas indestrutível.
Lidando com as cicatrizes e mágoas do passado religioso
À medida que Sofia se aventurava em seu novo caminho, uma dor latente persistia. Seu coração ainda carregava as cicatrizes dos anos vividos sob a tutela rígida das Testemunhas de Jeová, e a mágoa se entrelaçava profundamente em seu ser. À noite, quando o silêncio se infiltrava em seu quarto, ela sentia a saudade dos pais, dos amigos, e da vida que deixara para trás.
Em uma fatídica tarde, o rastro dessa dor a levou até o parque onde costumava meditar e refletir. O sol se punha no horizonte, tingindo o céu de tons rosa e dourados, e a brisa soprava suavemente, balançando as folhas das árvores. Sofia sentou-se à beira do lago, seus olhos fixos nas águas calmas que refletiam o céu. Ela fechou os olhos por um momento, tentando encontrar algum consolo na natureza que a cercava.
Nesse instante, uma figura familiar despontou entre as sombras do parque. Era seu pai, Francisco Almeida, com os olhos inchados e marejados de lágrimas. Ele a fitou com o olhar de um homem que perdeu a batalha, mas que ainda busca forças para lutar.
- Sofia... - sua voz estava embargada, e as palavras pareciam hesitar em sair de sua boca. - Eu... Eu não sei como dizer isso, mas preciso falar.
Sofia, surpresa pela aparição súbita de seu pai, sentiu o coração disparar e todo o seu corpo ser tomado por um turbilhão de emoções à flor da pele - mágoa, tristeza, saudade, ansiedade. A angústia que tentava esconder agora transbordava, urgente, incontida.
- Pai... - ela murmurou, cerrando os olhos enquanto as lágrimas começavam a escorrer por seu rosto. Um silêncio desconfortável se estabeleceu entre eles, como uma cortina espessa que ocultava o que realmente queriam dizer.
Respirando fundo, Francisco se aproximou e sentou-se ao lado dela.
- Sofia, eu... Eu estou tão perdido. A comunidade não nos trata da mesma maneira desde que você partiu. Falam pelas costas, nos acusam, nos julgam. Eu não compreendo por que as coisas têm que ser assim. Eu só queria proteger minha família, minha fé... Eu amava essa vida. Agora, tudo parece vazio, amargo.
Sofia fez uma pausa, absorvendo as palavras do pai e o peso delas em seu coração. Ela também ansiava por respostas, por compreensão e aceitação, mas sabia que o caminho da reconciliação com o passado não poderia ser trilhado de uma vez só. Era preciso tempo, paciência e, acima de tudo, amor - um amor incondicional que ia além das crenças e dogmas, um amor que transcendesse as divisões humanas e abraçasse a essência divina presente em cada um deles.
- Pai, ouça... - ela disse, segurando a mão dele com ternura. - Eu não posso trazer de volta o que foi perdido, nem consertar o que foi quebrado. Mas eu posso lhe oferecer meu coração, meu amor e minha compreensão. Nós não precisamos concordar com todo o dogma das Testemunhas de Jeová para nos amarmos ou nos respeitarmos. Nós estamos além disso. Somos família, e nosso laço é mais forte que quaisquer barreiras religiosas.
Francisco soluçou, a emoção transbordando de sua alma, enquanto o abraço de Sofia o envolvia como um cobertor quente, banhando suas cicatrizes e mágoas em luz e esperança.
- Obrigado, minha filha... Obrigado por me lembrar que não estamos sozinhos nessa jornada. Eu não sei onde isso nos levará, mas eu quero estar ao seu lado e tentar aprender com você, com suas experiências e sua busca pelo divino. Eu... Eu te amo, Sofia.
- Eu também te amo, pai - disse Sofia, enquanto as lágrimas molhavam seu rosto, mas agora eram lágrimas de alívio e de reconciliação. O amor desabrochava entre as cicatrizes e mágoas, apontando o caminho para um futuro em que a compreensão e a empatia atuariam como guias em sua busca incessante pela verdade e pela conexão genuína com o divino.
Sofia encontra comunhão no grupo de apoio
Sofia se encontrou diante do prédio antigo de tijolos aparentes e janelas grandes, que abrigava a sede do grupo de apoio aos desiludidos com a fé. Seu coração batia tão forte em seu peito que ela quase sentia como se fosse arrebentar. Pelo que tinha ouvido falar, a sala de reuniões ficava no andar térreo, bem ao lado da porta principal.
Ela hesitou, ainda pensando se deveria mesmo entrar. Os últimos meses haviam sido um turbilhão de emoções, e, embora estivesse ansiosa para conhecer outras pessoas que tivessem passado por experiências semelhantes, também tinha medo de abrir seu coração e ser mal compreendida.
Tomando um fôlego profundo, Sofia abriu a porta e entrou. A sala já estava ocupada por diversas pessoas, algumas sentadas em círculo, outras em pé, conversando em voz baixa. As paredes estavam cobertas por quadros informativos com panfletos e cartazes coloridos de eventos locais e regionais relacionados à busca da fé e da espiritualidade.
Sofia sentiu um calafrio na espinha, como se aqueles rostos lhe estivessem a julgar, e desejou poder fugir dali imediatamente. No entanto, antes que pudesse dar meia-volta, percebeu Joaquim entrando logo atrás dela, um sorriso gentil e encorajador nos lábios. Ele colocou a mão em seu ombro, transmitindo uma confiança que ela não sentia há muito tempo.
- Estamos juntos nisso, Sofia - disse ele baixinho. - Se quiser, posso ficar ao seu lado durante toda a reunião. Eu sei como é difícil dar este passo e enfrentar nossos medos, mas estou aqui por você.
Sofia acenou com a cabeça, emocionada demais para falar. Com o apoio de Joaquim, caminhou em direção ao grupo, pronta para enfrentar o início de uma nova jornada.
As apresentações começaram e, uma a uma, as vozes tremiam emotivamente ao compartilhar suas histórias. Havia ex-evangélicos, ex-católicos, ex-espíritas e até mesmo aqueles que não pertenciam a nenhuma denominação religiosa, mas que tiveram alguma experiência indesejada com a fé.
Sofia escutava atentamente, sentindo-se gradualmente menos sozinha em sua dor. Aquelas pessoas haviam enfrentado dilemas semelhantes, no entanto, cada uma delas tinha encontrado seu próprio caminho para superar a dor e o abandono que o fundamentalismo religioso havia deixado para trás.
Quando chegou sua vez de falar, Sofia hesitou, as palavras pareciam estar presas em sua garganta. Com a mão de Joaquim apoiada em seu ombro, ela conseguiu compartilhar sua história, desde a infância como Testemunha de Jeová até o momento em que sua vida entrou em crise, e explicou como seus pais se afastaram dela quando decidiu seguir um caminho mais amplo da fé.
Ao terminar seu relato, Sofia percebeu que todos os olhos estavam voltados para ela, repletos de compreensão e compaixão. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas, pela primeira vez em muito tempo, não eram de desespero ou solidão. Eram lágrimas de alívio e gratidão.
Gabriela, uma jovem mulher com longos cabelos negros e olhos profundos, olhou nos olhos de Sofia e murmurou:
- Sofia, você é incrivelmente corajosa por ter tomado aquela decisão, e pode ter certeza de que encontrou aqui um grupo que irá apoiá-la em todos os momentos, seja para ouvir suas dores ou para celebrar suas vitórias. Estamos juntos nessa jornada e temos uns aos outros.
Naquela sala, com Joaquim e todos esses rostos desconhecidos, mas amigáveis, Sofia sentiu que havia encontrado uma comunhão de corações partidos que assemelhava-se a um bálsamo para suas feridas. Enquanto cada voz ecoava com as dores e lutas de uma vida inteira, ela sabia que não estava mais sozinha - naquele espaço seguro, as sementes da cura e da transformação estavam germinando.
E, nessa noite em que Sofia encontrou comunhão no grupo de apoio, uma semente de esperança foi plantada em seu coração. Uma esperança de que, talvez, a fé não fosse algo apenas de dogmas e regras, mas também de amor, de aceitação e de consolo mútuo. De uma conexão com o sagrado que a verdadeira compreensão e uma jornada compartilhada poderiam proporcionar.
A construção de uma fé autêntica e adaptada à sua realidade
As cores vibrantes do céu do final da tarde se fundiam harmoniosamente à cena ribeirinha, com suas águas calmas e serenas. Sofia se sentou em um banco de madeira já desgastado pelo tempo, no lugar onde começava a trilha que a levaria à biblioteca comunitária, onde deveria se encontrar com o grupo de apoio mais tarde.
Refletiu, então, sobre a gradual construção de sua fé autêntica e adaptada à sua realidade. Já se passara algum tempo desde que deixara a comunidade das Testemunhas de Jeová, e agora se permitia mergulhar em livros e conversas sobre diferentes temas e práticas espirituais.
Estava interessada em entender o relacionamento de outras pessoas com o divino e como essas visões diversas poderiam auxiliá-la em sua fé e trazer paz aos desejos e questionamentos que ainda rondavam seu coração.
Enquanto permanecia em silêncio naquele banco, perdida em seus pensamentos, não percebeu que alguém se sentara ao seu lado. Quando olhou, viu que era Pedro, com um sorriso afável no rosto.
"Ei, Sofia! Estava tão concentrada em seus pensamentos que nem me viu chegar", disse ele.
Sofia esboçou um sorriso aliviado. "Oi, Pedro. É verdade, estava aproveitando este momento para refletir um pouco sobre minha jornada espiritual."
"Ah, sim? E o que está pensando agora?" perguntou Pedro, interessado.
"Sabe, Pedro, tenho lido e estudado bastante sobre outras tradições religiosas e espirituais, mas às vezes me sinto sobrecarregada pelo volume de informações e pelas possibilidades. Quero encontrar um equilíbrio na minha vida entre uma busca espiritual ampla e uma fé verdadeira e pessoal."
Pedro concordou com a cabeça, olhando para o horizonte, onde o sol já começava a se pôr. "Compreendo, Sofia. Também já me senti assim. O importante é você caminhar com calma, sem pressa e, acima de tudo, ser honesta consigo mesma. Se alguma prática ou crença não ressoa com você, ouça esse sentimento e siga em frente."
"Sim, tenho tentado fazer isso. Mas agora estou pensando em algo que me inquieta: como posso encontrar solidez na minha fé e, ao mesmo tempo, respeitar e aprender com todas essas tradições religiosas? Como posso ser firme em minhas convicções e, ao mesmo tempo, aberta ao diálogo e à compreensão mútua?"
Pedro ponderou por um momento e, então, respondeu: "Acho que a chave é construir uma base sólida e autêntica com base naquilo que realmente importa para você, Sofia. Para mim, é a ênfase no amor, na generosidade e na compaixão, valores presentes em todas as tradições espirituais com as quais me identifico. Não se trata de se tornar um teólogo ou um erudito, mas de viver uma vida guiada por princípios e práticas que ressoem com seu coração e sua alma."
Sofia sorriu, agradecida pela sabedoria de Pedro. "Obrigada, Pedro. Você tem razão. Preciso me concentrar naquilo que é essencial para minha fé, e vivê-la plenamente e com coragem."
Os dois caminharam juntos até a biblioteca comunitária, onde foram calorosamente recebidos pelo grupo que aguardava sua chegada. Lá, em meio a amigos e rostos gentis, cada um deles compartilhava suas histórias e aprendizados, unidos pelo desejo de viver uma vida mais autêntica e construir uma fé que fizesse sentido e trouxesse paz e significado aos seus corações.
Naquele espaço acolhedor, entre pessoas de diferentes origens e tradições espirituais, Sofia sentiu-se fortalecida em sua própria jornada de autoconhecimento e fé. Com a ajuda do grupo, compreendeu que, embora a busca por um relacionamento autêntico e adaptado à sua realidade pudesse ser longa e cheia de desafios, era possível construir uma fé sólida e verdadeira que transcendera as divisões e dogmas, e que permitisse uma vivência mais plena e amorosa de sua espiritualidade.
O anseio pela pureza do relacionamento com Deus
Sofia encontrava-se sozinha no refúgio que escolhera naquela tarde quente de domingo: uma clareira escondida no pincel voluptuoso das árvores centenárias, atravessada por um riacho de águas frias e cristalinas. Ela sentia o vento penteando seus cabelos, enquanto seu olhar oscilava entre as margaridas à beira da água e a gaiola com seu pequeno céu azul.
Aqueles momentos de contemplação faziam parte de sua nova rotina, um olhar introspectivo em sua alma e uma tentativa de conectar-se ao sagrado.
Diante da pressa do mundo, retomou os estudos bíblicos de tempos atrás, mas com um frescor diferente. Dessa vez, não estava preocupada com regras e doutrinas, mas em ouvir os sentimentos e encontrar-se em meio aos textos consagrados.
Carregava naquele cantil a meditação que aprendeu com Joaquim, a mesma que iniciou sua jornada rumo à desordem com o sagrado. Dessa vez, não tinha a companhia dele, mas sabia que Joaquim estava ali presente, como um colibri no canto de seus olhos. Sim, estava fazendo tudo por si própria, mas havia aprendido muito com aquele moço de quem se tornara amiga íntima – a aceitação do seu próprio estado imperfeito neste mundo, a fé que tinha de buscar incessantemente em seu coração e a coragem de enfrentar as aflições da vida.
Os versículos do Novo Testamento se sucediam, criando no coração de Sofia uma montanha de entusiasmo, a alma a emudecer e a se despir perante o sussurrar dos salgueiros. Então, fechou os olhos, deixando-se inundar pela energia do relento e do relvado em que repousava.
Havia muitos meses desde a dolorosa ruptura com o mundo das Testemunhas de Jeová, e Sofia passara por imensos desafios e mudanças desde então. Sozinha e distante do antigo mundo, a jovem buscava agora fortalecer a relação com Deus e desenvolver uma fé autônoma e mais poderosa, embasada em seus próprios sentimentos e experiências.
Num momento de introspecção nesse sagrado capíulo sete, Sofia percebeu que sua fé estava alcançando um alicerce sólido, embora ainda cambaleasse nas últimas pendências.
Levando seu cálice à boca, Sofia deixou-se perder na complexidade do beijo gelado do riacho roçando seus lábios. Nesse momento, foi capaz de se sentir ao mesmo tempo satisfeita e inquieta, grata e cética, conectada e confusa; ora navegava à deriva das suas perguntas incômodas, ora flutuava no conforto de uma boia de paz no oceano de suas interrogações.
- Por que me sinto assim, Senhor? - questionou ela baixinho aos céus. - Onde está a pura e inabalável conexão com Deus que tanto desejo?
Naquele instante, ouviu-se ao longe um melro a revoar entre as flores silvestres. Sofia ergueu os olhos ao ouvir um som desconhecido. A música do melro parecia-lhe um suspiro, uma tentativa de atrair o divino para terreiro aos saltinhos. Era nesse sussurro inaudível que Sofia se permitiu conjecturar – se ao menos fosse capaz de ouvir o som da oração no vento, talvez pudesse se sentir mais próxima da perfeição que buscava.
- Oh, Sofia - disse baixinho uma voz suave e familiar. - Às vezes, a perfeição que tanto buscamos não está onde pensamos.
Sobressaltada, Sofia se levantou e avistou ao pé de uma árvore a imagem graciosa de uma criança. O menino, aparentando ter nove anos, segurava delicadamente o melro nas mãos entrelaçadas e, com doçura infinita no sorriso, depositou-o cuidadosamente no galho mais baixo da árvore.
- Um pássaro no ninho não se preocupa com quanto vento enfrenta ou o quão fundo está o mar abaixo dele - continuou o menino. - Ele simplesmente sabe que deve cantar e voar, sentir o sopro das árvores e a ternura do sol.
Sofia, ainda surpresa, encarava a criança com ternura e lembrança de uma época inocente da própria vida. A menção do melro fazia seu coração ferver de emoção, como se tivesse encontrado a resposta que procurava.
- É isso, então? - sussurrou ela com uma lágrima a escorrer pelo rosto. - Devo apenas viver minha fé, naturalmente, como o pássaro que canta e dança em seu momento presente?
O garoto sorriu e acenou com a cabeça.
- Sim, Sofia. Acredite em si mesma e no poder do amor divino que flui em seu coração. Viva sua fé com simplicidade e verdade, e ouça o sussurro do vento em seu canto.
Sofia sentiu gratidão e uma serenidade ímpar, reconfortante como o abraço de Madalena em noites de tempestade. Naquele momento, ali, na clareira escondida, com os olhos marejados e o espírito a vibrar intensamente, ela compreendeu que a busca pela pureza no relacionamento com Deus residia menos em um mero desejo e mais em um eterno compromisso com o ouvir e o silenciar, em respeitar os sinais que lhe eram apresentados, e na certeza de que, em sua simplicidade, havia encontrado uma fé inexplicável e inabalável.
O encontro inesperado e transformador
Foram muitos os caminhos que trouxeram Joaquim de volta à cidade de sua infância, e muitos os becos que ficaram por trás, repletos de histórias de escape e adversidade. Quando soube que Sofia voltara à cidade, uma força indescritível o levou a acreditar que o encontro que ele tanto desejara enfim aconteceria.
Em sua caminhada solitária, abriu-se então diante dele a praça, tal como uma relíquia daquela era de sonhos antigos e esperanças irreais. As árvores pareciam mais jovens e verdes, e o chão cantava sob seus passos, marcado pelas pegadas de uma humanidade que outrora evocava pânico e promessas de ostracismo em seu peito.
Movido pelo canto dos grilos e da alma rompendo as correntes da lembrança, Joaquim começou a perceber que era tempo de voltar para casa.
Quase como um sussurro nostálgico, lenta e inevitavelmente, percebeu ao longe a figura de Sofia sentada à sombra da sua velha árvore preferida, o rosto iluminado pelo sol poente. Imóvel, tímido e confrontado com o peso dos anos que separavam sua memória daquele instante, Joaquim sentiu seu coração se apertar; uma tremedeira em suas mãos o fez vacilar.
"Sofia", sua voz sussurrava, e por um segundo pareceu-lhe que todo o mundo reencontrara naquele instante, sob aquele céu cor de são-sarilho, o seu próprio equilíbrio.
Sofia levantou-se de um salto, como se tivesse sido despertada de um sonho profundo.
"Joaquim?" - Confusa, hesitou antes de correr em sua direção. A alegria e admiração iluminando seu rosto.
"Como você está aqui? Pensei que..." - gaguejou Sofia, interrompida por um abraço apertado e aliviado. "É tão bom vê-lo novamente."
Sob a aragem fresca e a luminosidade lavanda que começava a surgir, ambos inspecionaram um ao outro, buscando compreender quais traços do passado ainda repousavam nas faces que os anos haviam alterado.
Por fim, o silêncio se quebrou, e o suspiro do coração, que não cabia mais no peito, se desprendeu:
"Joaquim, ainda sinto o peso de antigos questionamentos e a opressão que me sufocava, apesar de todos os passos que dei em busca da minha liberdade espiritual. Por que isso ainda me atormenta?" Sofia revelou, o olhar turbulento.
As palavras de Sofia causaram-lhe uma dor aguda na alma, não só por sentir o sofrimento dela, mas também por reconhecer esse mesmo sofrimento em si. O tormento e a vontade de encontrar um equilíbrio entre suas raízes e a liberdade desejada pareciam ainda mais próximos do que quando se afastaram há tantos anos.
"Sofia... Reconheço essa dor, essa busca por um relacionamento autêntico tanto com a fé quanto consigo mesma. Sei o quanto sentimos o fardo do passado em nossos corações. Mas acredito que, por mais dolorido que seja, esse processo nos molda e nos faz evoluir para a pessoa que desejamos ser, mais verdadeira a nós mesmos e ao divino."
O olhar vítreo de Sofia denunciava emoções engolidas e vividas na solidão do autoquestionamento. Aos poucos, sentia que talvez houvesse uma luz no fim do caminho, e um sincero agradecimento brotou de seus lábios: "Obrigada, Joaquim. Obrigada por ter compartilhado comigo aquele dia no café e pelos momentos que passamos juntos, mesmo que distantes. Você me mostrou que há muitas formas de se relacionar com o sagrado e que a essência da fé é encontrada no amor e na humanidade que partilhamos um com o outro."
"Agradeço a você também, Sofia. Somos caminhantes nessa jornada da vida, não estamos sozinhos. Nosso reencontro e a ressonância dos nossos corações são a prova disso", disse Joaquim, sorrindo.
Naquela noite, sob o céu estrelado e repleto de segredos insondáveis, o destino havia mais uma vez cruzado os caminhos de Sofia e Joaquim. Armados de fé e amor, juntos, seguiriam em busca da felicidade e paz que tanto almejavam, fortes o suficiente para enfrentar os desafios e tormentos que talvez ainda os aguardassem.
E quando a lua cheia se banhou de luar na encosta, um beijo tocou o vento entre as folhas, sorrateiro e curioso como se quisesse aprender a arte de um terno e divino abraço eterno.
O encontro inesperado e transformador
O caminho que trazia Joaquim de volta à cidade de sua infância era, na verdade, uma estrada tortuosa e estreita, cercada de árvores que, pouco a pouco, revelavam a antiga casa paroquial, agora abandonada no curso da história. A última vez que esteve ali, anos afastaram-no de suas raízes, dos mitos e dos dogmas que o marcaram tanto, e foram muitos os becos – de sombras e reinícios – que haviam ficado para trás, repletos de histórias de escape e adversidade. Quando soube que Sofia havia voltado à cidade, uma força indescritível o fez acreditar que o encontro que ele tanto desejara finalmente aconteceria.
A igreja das Testemunhas de Jeová, outrora centro de sua existência e palco do início de sua revolução, estava agora silenciosa e imóvel como uma relíquia do universo de sonhos antigos e esperanças irreais. As árvores pareciam a cada passo um pouco mais jovens e verdes, e o chão cantava sob seus pés, marcado pelas pegadas de uma humanidade que outrora lhe evocava o pânico e a promessa de ostracismo.
Mas agora, movido pelo canto dos grilos e de sua alma rompendo as correntes da lembrança, Joaquim subia lentamente os degraus da velha escadaria, decidido a enfrentar tudo aquilo que um dia o fizera sangrar, refletindo sobre o tempo em que buscou outros patamares espirituais, procurou se distanciar do passado, ansiando não se deixar engolir pela nostalgia que lentamente se aproximava. Estava de volta, mesmo sem saber o porquê.
Era um domingo vespertino, e, de súbito, aos pés da escadaria, Joaquim ergueu os olhos ansiosos para encontrar a luz do poente brincando no rosto de Sofia. Ele a avistava sentada sob a copa de sua amada árvore e, imóvel, deparava-se com a lembrança de si mesma que Sofia trazia, na franja desalinhada ou no sorriso inquieto que antecipava um arco-íris de perguntas.
"Sofia", sua voz sussurrava de mansinho, e por um segundo pareceu a Joaquim que todo o mundo reencontrara naquele instante, sob aquele céu cor de são-sarilho, o seu próprio equilíbrio. A cumplicidade do silêncio sabia apenas do choro soluçado que a moça escondia no pano de uma saudade remota.
Sofia, por sua vez, não ouviu o seu nome perder-se entre as aragens alteantes, pois as palavras lhe fugiam da boca como areia limpa da crueza da praia – uma mistura de medo e consolação, curiosidade e ternura”, respondeu ele.
Seus olhos se encontraram por um instante, aproveitando aquele momento em que o ocaso colidia com o ruido de antigas leis e a fragilidade de um futuro sem caminho, quando Joaquim pegou as mãos de Sofia como quem recupera o que há muito perdera, e, silenciosa e resignadamente, a jovem ouviu o amigo dizer:
– Por um bom tempo, também eu perdi o prumo, passei por gargantas escarpadas e caminhos sinuosos até conseguir voltar para este lugar que outrora me parecia uma sentença, atravessado por lembranças e dissuasões. Mas agora estou aqui; e não sei o que virá a acontecer no futuro, apenas que é bom estar aqui de novo e caminhar ao teu lado, sem medo do deserto que por tanto tempo nos separou e do futuro que nos espera.
A chegada repentina de Joaquim à cidade
Naquela manhã, a cidade onde vivera quase toda a sua vida brilhava com uma nitidez ofuscante e inevitável, como o antegosto de um rico e pungente sorriso, cortando a luz que rompia em raios vertiginosos as bocas das janelas enquanto dançavam sobre o cálculo dos soalhos de carvalho e o arfar dos pássaros.
Sofia, agitada pelas ondas de curiosidade que se espalhavam na superfície dos jardins, aproveitou as primeiras horas da manhã para passear pelo centro da cidade. Ali, no núcleo da vida urbana, ela encontrava a paz que tantas vezes buscava no silêncio desértico daquele recanto escondido da memória. Da fronde abundante das árvores copadas pelos sons da água e a leveza do vento, desprendia-se toda a aragem das horas, que sofriam de impaciência quando esperava.
Mas, naquele dia, uma força distinta dominava a sina que por tantos anos se moldara às parcelas esquecidas de um muro insensato e transversal, e o eco surdo das rua, sombras reviradas pelo tempo e luzes projetadas sobre um céu que, visível ou não, abrigara as promessas e suspiros de outros que, como ela, trovavam-se no limiar do caminhar - era esse som inexplicável que swirava no ar e tornava o centro da cidade um refúgio e um enigma.
Decidida a não desdenhar da coragem que lhe tutelava os pensamentos e os pés, Sofia trilhou um caminho que a conduziria àquele café ao pé da praça, onde tantas vezes, sob o teto perfumado de croissants e menta fresca e o olhar indignado das beatas encapuzadas, sonhara com o reencontro daquele que, no íntimo do seu coração, ainda fervilhava com uma ternura e uma saudade inextinguíveis.
Sofia entra no café e pede um capuccino com chantilly, sentando-se em uma das mesas perto da janela. O ambiente é aconchegante, com paredes de tijolos aparentes e estantes repletas de livros. Um murmúrio abafado de outras conversas preenche o espaço, junto com o aroma de café e canela que paira no ar. Ela lança um olhar para fora da janela, observando o movimento das pessoas na rua, as árvores dançando na suave brisa da manhã, e aquele céu cor de são-sarilho que cobre tudo com uma aura misteriosa.
Ainda perdida em seus devaneios, Sofia sente uma presença que a invade por entre os estalidos de café e o sorriso infantil que, escorregadio, trepa por seus olhos como um ramalhete de hélices e claridades. Ele está lá, tão próximo e tão inacreditavelmente real, que o coração lhe estala no peito como um volante desconexo e sobressaltado.
Volta-se lentamente na direção do balcão e, por entre os vãos de esperança pendentes das teias de aranha e dos bolos glaçados que multiplicam o tempo com a pressa e a ansiedade da voragem, Sofia contempla, incrédula e em silêncio, o rosto que lhe sorri ao longe, atravessando a velocidade dos instantes.
É Joaquim. As rugas em seu rosto agora desenham um mapa de desafios e vitórias, e seus olhos ainda têm aquela chama de inquietação e esperança que tão apaixonadamente ardia em Sofia. Empurrado pela vida e pela desconhecida força que o conduzia de volta àquele ninho e aqueles beijos, Joaquim caminha a passos largos e decididos até ela, como se o mundo movesse seus alicerces para aproximar duas almas que se tocam e se completam.
"Sofia, sou eu, Joaquim! Como você está?", diz ele, com uma voz carregada de alegria e nostalgia.
Sofia, sem palavras, olha para Joaquim com emoção e uma mistura de medo e esperança, como se receasse que uma vez mais perderia a possibilidade do reencontro e da verdade nascida das estrelas e dos destinos cruzados.
Joaquim abraça Sofia longamente, e ambos se afogam naquele abraço que, por todos os anos e distâncias, desejavam mais do que qualquer outra coisa na vida. E naquele abraço e naquele dia, o início e o fim dos tempos tinham encontrado um lugar que os redimia das partidas e dos infortúnios, pastoralmente ensinando a ambos que os encontros, quando previstos pelo amor e pela vontade, descem como a chuva que, leve e irremediável, marca na pele as nascentes reticências de todos os sonhos.
Encontro entre Sofia e Joaquim no café
O sol poente escoava-se por entre as frestas das folhas, a dourar os fios do cabelo de Sofia enquanto ela apertava o lenço branco enrolado em torno do pescoço, como se buscasse um afago invisível, um colar de amparo. Aproximava-se a hora do encontro, a hora marcada por um acordo silencioso e uma esperança capaz de engolir todos os meses e os invólucros do coração.
Por entre os arbustos, os olhos de Sofia flamejavam com a intensidade de um arco-íris infantil e os pêsames dourados das folhas que, rodopiando até o solo encharcado e os bancos dos jardins, cumprimentavam a louça do tempo e a madeira úmida que cosia os extremos do inverno.
Sentia o craving das ondas batendo em seus olhos e, ao longe, a dois passos do fogo e das geadas que, em sequência, mergulhavam o coração de Sofia nas trevas abissais da dúvida e do fencia, a esperança refulgia na forma imprevista e confusa de um sorriso arremessado pelos caminhos insondáveis do destino e os dilemas do coração humano, o rosto enrubescido e jovial de Joaquim.
Ele aproximava-se agora, pisando com a ponta dos pés no asfalto escuro e um brilho indescritível e inesquecível nos olhos, temendo – tal como Sofia – a felicidade de um arco com duas pontas e o equilíbrio desconhecido da memória, que, escorrendo nos olhos cansados e nas pernas frágeis das senhoras velhas que, sentadas na lonjura dos extremos, contemplavam o bailado infinito das borboletas das sumidades, eternizava no peito de Sofia a ânsia de um coração ferido pelas lágrimas que agonizavam em surdina.
Joaquim aproximou-se da mesa de Sofia e, sem interromper a sucessão de imagens desfilando em seus olhos, apontou para a cadeira defronte dela, esboçando um sorriso nervoso e uma colher de súplica entre as linhas pretas das mãos calosas e das estrelas de poeira que se acumulavam no assoalho da casa paroquial.
"Posso me sentar aqui?"
A voz de Joaquim ainda tinha aquele timbre doce e melancólico que, soprando como uma rajada de vento sobre as casas com telhas de barro e os flamenguistas empedernidos debruçados sobre a grade do estádio, suscitava em Sofia uma eloquência silenciosa e uma canção interrompida por vozes de crianças a brincar no meio do campo de bola.
"Claro", respondeu Sofia, sua voz trêmula e ansiosa como as pontas de uma harpa diante do primeiro beijo de uma flauta recém-talhada. "Adoraria a companhia."
E, no lapso de um minuto, Joaquim e Sofia sentaram-se frente a frente, com suas xícaras fumegantes de café entre as mãos geladas pelo nervosismo e os olhos tentando conter as palavras que, desobedientes e incontidas, queriam escapar para o mundo.
"Mudou-se?", perguntou Joaquim, conhecendo já a resposta mas desejando estabelecer um lastro no reino invisível do coração. "É estranho te reencontrar por aqui. Achei que talvez nunca mais lhe veria."
Sofia, à procura de fôlego entre as cordilheiras de medo e de ansiedade que pairavam acima das xícaras de café e das vitrolas abandonadas no corredor da memória, sorriu e, num tom suave e compassado, respondeu a Joaquim: "É estranho, não é? Nem eu acredito que ainda estamos aqui... Há tanta coisa que mudou, e outras que voltam do passado, como uma velha canção."
Joaquim sorriu timidamente e baixou os olhos. Sentia-se atraído pelo olhar sincero de Sofia, querendo penetrar suas profundezas e perder-se nas histórias entrelaçadas nas linhas de seu rosto. A comunhão do silêncio crescera como uma força invisível, alimentada pelas recordações e pelos anseios de dois corações que no encontro encontravam o resguardo e o alento das saudades.
"Me conte, Sofia, o que mudou?", perguntou Joaquim com um timbre envelhecido pelo tempo e pela ternura do reencontro da memória.
E, naquele instante, entre as palavras que se cruzavam e se fundiam nos olhos e no abraço-enigma da saudade, Sofia inscrevia desejos e passos partidos pelos dedos de um coração redimido, e suas histórias eram as páginas invisíveis que ambos, em silêncio, esperavam ler e que falavam da travessia pelas ruas escuras e solitárias do tempo.
Conversa reveladora sobre fé e espiritualidade
Capítulo 8: O encontro transformador
Desde que retornara ao centro da cidade, Sofia iniciara uma rotina de passeios matutinos para saciar sua intuição com as cores e os sons que traziam recordações daqueles tempos longínquos de infância. Diariamente, ela caminhava pela rua da escola, já velha e esquecida, passava pelo prédio onde antes a religião adorava dançar e, com o sorriso brilhante e alegre dos meninos recém-batizados, oferecia a Deus e às pessoas seu amor e sua preocupação.
Sofia já descobrira que sua busca por conhecimento e por um relacionamento mais íntimo e pessoal com Deus a afastara da rigidez e das paredes erguidas pela ortodoxia das Testemunhas de Jeová. Agora, ansiosa e nervosa, caminhava por aquele mesmo caminho em direção a um encontro que haveria de mudar sua vida e a maneira de perceber o universo em sua totalidade.
Intercalando-se lentamente entre as árvores e os rostos pálidos e quentes de jovens e idosos devotos, Sofia revive as histórias e olhares que uma vez trocara com Joaquim, o jovem misterioso e carismático que a influenciara a repensar sua postura e a iniciar uma jornada de autodescoberta espiritual.
Sob a luz do ocaso, ela ansiosamente aguarda Joaquim em um dos bancos do parque, molhado pelas incontáveis lágrimas de orvalho e transcrito em pedra, hera e madeira, o loiro dourado das folhas e a negritude das sombras, expressão de uma solidão que ela deseja superar e encontrar nesse novo encontro.
Poucos minutos antes da hora marcada, Joaquim aparece no horizonte e caminha em direção a Sofia. Ele era sempre pontual, itensivo e afável na maneira como compartilhava com ela a verdade oculta sob o véu do silêncio e dos mistérios da vida. Sua presença causava um misto de emoções; medo e euforia, tamanha intensidade e calor.
Joaquim avistou-a sentada no banco, sob a sombra de uma árvore magnífica e esvoaçante, parecendo quase alada enquanto folhas e flores serenavam a solenidade de sua espera. Estremeceu ligeiramente, engoliu em seco e avançou, questionando se era surreal demais reencontrá-la agora.
- Olá, Sofia – disse ele, hesitando levemente.
Ela ergueu os olhos e viu nele uma profundidade assombrosa e desconfortável. Sentiu-se vulnerável e assustada, mas simultaneamente atraída pelo brilho em seus olhos, um brilho que espelhava a mesma inquietude com que ambos, ela e Joaquim, contemplavam o abismo infinito do desconhecido.
- Olá, Joaquim – respondeu ela, mostrando um sorriso tímido e ansioso.
- Tenho pensado muito em você e em tudo o que discutimos meses atrás – começou Joaquim, expressando seu desconforto e constrangimento – Todos esses dias eu quis te procurar, mas... não sabia como você reagiria.
- Sabe, Joaquim – disse ela, hesitante por um momento – eu também pensei muito no que conversamos. Mudou completamente a maneira como vejo o mundo e como me relaciono com o divino. Encontrei um novo caminho, mais compassivo e verdadeiro.
Ela arregaçou as mangas do suéter e lançou a ele um olhar intenso e carregado de afeição. Joaquim, envolvido pelo aquecedor olhar de Sofia, sentiu uma conexão que transcendera os limites da história deles, das palavras ou das expectativas.
- Quero que você saiba que, graças a você – prosseguiu Sofia –, eu aprendi a viver com fé e liberdade. Livre de dogmas e regras estreitando minha espiritualidade.
Joaquim abaixou os olhos, incrédulo e temeroso do poder de suas palavras e ações, do profundo impacto que causara na vida dessa mulher incrível que habitava o estranho mundo entre Deus e os homens.
- Eu apenas mostrei o caminho – disse ele, com a voz quente e trêmula – Mas você foi quem decidiu seguir nele, enfrentando suas próprias batalhas e tomando suas próprias decisões.
Sofia enxugou uma lágrima solitária que escapava por seu rosto, enquanto Joaquim sorria e estendia a mão em um gesto de confiança, solidariedade e reconciliação.
- Então, estamos juntos nessa jornada – afirmou ela, segurando a mão de Joaquim e iniciando um diálogo que prosseguiria, atravessando segredos insondáveis, anos de sofrimento e de buscas pelas verdades ocultas que, agora, brilhariam como estrelas límpidas e resplandecentes no céu.
A influência de Joaquim na mudança da perspectiva de Sofia
Capítulo 8: A Influência de Joaquim na Mudança da Perspectiva de Sofia
Joaquim observava o céu enrubescido do entardecer e suas mãos frias ansiavam por repousar nas palmas alvas e suaves de Sofia. Sentia, na ponta dos dedos, a inquietação de um outono ressequido pelo vento e a suavidade informe das primeiras folhas que, ao despontar do crepúsculo, tombavam sobre os campos úmidos e as telhas quentes das casas de fachada empedrada.
Subitamente, seu olhar cruzou o horizonte e pousou, com um suspiro de melancolia, no rosto frágil e luminoso de Sofia, que se aproximava entre as árvores e as ruazinhas arquejantes e antigas da cidade. A vida, com seus altos e baixos, seus desvãos e labirintos, os acordados e os anestesiados, se insinuava, em cores e luzes vivas e silentes, na promessa informe e ainda insólita daquele encontro.
De longe, Joaquim divisou os olhos castanhos e os cabelos encaracolados de Sofia, a perfumarem-se ao vento e ao murmúrio das folhas que, ao deslizarem pelas engrenagens invisíveis dos galhos e das borboletas do inverno, anunciavam a chegada suave e abençoada da mulher com quem sonhara, secretamente, horas a fio nas madrugadas desamparadas e assustadoras da alma.
"Espere, Sofia", murmurou a voz entrecortada de Joaquim, como que a invocar um pássaro encantado e a linguagem silenciosa das pérolas submersas no fundo do oceano. "Espere, e perceberá que as ondas acariciam nossos corações."
Sofia parou, surpresa e descompassada, como se pressentisse, no sabor do vento e na maciez das sombras e das luzes que se fundiam dispersas ao longo dos caminhos e das árvores, a everglo aguardada e dadivosa, a resposta final aos meandros e enigmas que a vida lhe ofertara, através de um cálice invisível e misterioso, vertindo em suas veias uma seiva espessa e diferente.
Joaquim aproximou-se lentamente e, estendendo a mão com um gesto quase inaudível de ternura e de compreensão, tocou, pela primeira vez desde que se conhecera, a palma delicada e gentil de Sofia. Ela estremeceu, como um crisântemo rachando o casulo de saudades e a prisão de votos que a vida, em seu jogo inescrutável e complexo, lhes impusera.
Os olhos se encontraram, vivazes e profundamente iluminados pela lua que, agora, banhava-se com seu prateado inconfundível nas águas quentes e consoladoras da noite, e as palavras, em sua linguagem noturna e avassaladora, esvaneceram-se no ar frio e envolvente das ruas estreitas e desertas.
"Não tenha medo, Sofia", sussurrou Joaquim em meio a um riacho de luz, que lhes envelopava as almas e dissipava as sombras e as intermitências.
"O medo é o que nos separa da verdade", prosseguiu ele, fitando-a com uma emoção indizível e preciosa. "Sejamos valentes e audaciosos em nossa busca por uma espiritualidade genuína e próxima do coração."
Sofia assentiu, sentindo-se mais forte e decidida do que jamais estivera. Confiante na direção de Joaquim e na bondade inata de Deus, ela se permitiu abrir as asas de sua consciência e deixá-las dobrar-se e desdobrar-se, alcançando, afinal, a profundidade e o expansão prometidas pela revelação de uma fé iluminada pelo amor e pela luz interior.
"Você é o guia que eu procurava", afirmou ela, com uma convicção dolorosa e luminosa. "Você me trouxe a liberdade que eu só conhecia em sonhos."
E ali, sob o céu estrelado e o manto da noite, Joaquim e Sofia juraram, em um pacto lacrado com uma força silenciosa e eterna, que jamais deixariam seus corações se perderem novamente no labirinto obscuro das dúvidas e das restrições, mas buscariam juntos, nas ações e nos desafios que o futuro lhes traria, a unificação plena e iluminada de suas almas e a fidelidade incondicional à voz de Deus que, correndo velada e melodiosa na escuridão, chamava-os para uma vida de entrega e amor.
Assim, amparados pelos sonhos e a esperança de um futuro repleto de luz e possibilidades, Sofia e Joaquim caminharam, lado a lado, rumo à cidade iluminada pela lua crescente e ao prometido resgate das marés invisíveis e poderosas que a vida, em sua sabedoria e misericórdia, lhes reservará. E, nas profundezas infinitas de suas almas, ressoará eternamente o cântico de fé e de amor que ambos, unidos, entoarão, para iluminar os caminhos incertos e abençoar as sombras tenebrosas das noites sem fim.
O início da transformação no relacionamento de Sofia com Deus
Capítulo 8: O Início da Transformação no Relacionamento de Sofia com Deus
Sob os pés banhados pelo orvalho e pelas preocupações, Sofia caminhou até a beira da água que tremeluzia como mil olhos refletindo as estrelas. Por um momento, o mundo desapareceu e ela experimentou um silêncio tão completo que sentiu o seu próprio pulsar coração, compassado e grandioso como um cântico milenar.
Involuntariamente, Sofia se ajoelhou e, subitamente, compreendeu um tipo de oração que jamais conhecera na rigidez das palavras ensaiadas e das convenções religiosas. Uma onda de lava quente brotou no fundo de seu peito, fazendo-a soluçar e tremer como um lírio de asas batidas.
"Pai," sussurrou ela entre lágrimas e soluços, como se estivesse descobrindo, pela primeira vez, a capacidade de suas palavras e da água e do ar em penetrar no cerne do cerne do invisível. "Pai, por onde devo ir? Como alcançar o Teu rosto e a paz tão esperada e almejada que a escuridão da noite me ocultou como um véu?"
Não houve resposta, nem de vento e ar, nem do céu afugentado pelo clarão. Apenas a respiração ofegante de Sofia e a leve ondulação das águas pareciam existir naquele momento. E então, como um raio de sol cortando o nevoeiro, a palavra chegou até ela, quente e vibrante como as primeiras lâminas do amanhecer.
"Filha," soprou uma voz que parecia ao mesmo tempo íntima e distante como o imenso vazio das estrelas, alinhavando-se no fluxo dos pensamentos dela. "Filha, aqui estou. Tu estás me buscando."
Sofia não podia explicar como sabia que aquela voz era, de maneira incontestável e onipresente, a de Deus. Mas havia uma certeza inabalável rondando-na ao ouvi-la, inundando-a de uma fé inocente e límpida que nunca soubera ser possível.
"Me encontre onde estiveres, filha," prosseguiu a voz, "Pois estou sempre com você, em teu coração, e conhecerei a sinceridade de tua busca."
Era uma chamada que transcendia os escritos, os dogmas e os cálices erguidos em luz e sombra, como uma força pura e infinita que, subitamente, descerrou à sua frente um mundo novo e deslumbrante - um mundo habitado por Deus.
A partir dessa noite, Sofia abriu-se para uma aventura completa e incomparável no reino de sua fé. Deixou-se envolver pela voz do divino, pela luz que quebra as trevas e que dança no abismo entre a dor e o êxtase. Já não era suficiente a adoração silenciosa da maioria, as estátuas e as fórmulas que lhe ensinaram.
Sofia ansiava por um encontro direto e profundo, uma comunhão que se alojaria em cada célula de seu corpo e em cada nuance do tempo e espaço. E, ao longo do caminho sinuoso que se revelou a seus pés, foi descobrindo aspectos intimos da espiritualidade que, de alguma forma, sempre arderam em seu coração - reacendendo-se naquela noite sob a forma de uma voz que era ao mesmo tempo a imobilidade e a tempestade, o clarão e a escuridão, a paz e o furor.
Nesse momento luminoso e assombroso, sofia sentiu seu coração irromper em chamas, era calamitoso e grandioso. No entanto, ela encontrou-se com o seu deus, encontrou-se no meio da escuridão e do brilho da emergência pelo amor que finalmente encontrara em si mesma.
Aprendendo a viver com fé e liberdade
Capítulo 9: Aprendendo a Viver com Fé e Liberdade
O sol derramava sua luz dourada e trêmula sobre as águas do lago, como se um anjo desenhasse arabescos com a ponta dos dedos na superfície imóvel e sonolenta. Sofia contemplava aquele espetáculo fugaz e incerto, envolta numa tapeçaria de penumbras e de mistérios, enquanto as recordações fluíam e desapareciam como nuvens de uma tempestade que se distanciam em direção ao horizonte.
Era uma tarde morna e preguiçosa no parque, aquelas árvores centenárias tecendo sombras verdes e sinuosas sobre a grama, e os pássaros celebrando em coro a chegada da primavera e a revivescência do espírito. Sofia se sentia tão livre quanto aqueles pássaros a bailar no azul do céu e a pousar em galhos que se estendiam como braços acolhedores em direção à eternidade.
Pensou em quanto sua vida havia mudado desde que deixara para trás as amarras de sua antiga fé, e uma profunda sensação de gratidão e de serenidade se apossou de seu coração, como um sussurro de vento conduzindo pétalas de flores para um refúgio etéreo e inatingível.
As lembranças do passado vieram, por momentos, esmaecer-se na bruma da tarde, resvalando sobre seus olhos cerrados como orvalhos a se evaporar na tênue e tépida carícia do sol. As vozes, os rostos, os lugares em que conhecera a esperança e o desespero, a fé e a desilusão... tudo se amontoava na paisagem de sua alma, mesclando-se às cores vibrantes e difusas como um arco-íris embaciado e tardio.
"Como pode o coração conter em si tanto amor e tanto sofrimento, tanta luz e tanta escuridão?", murmurou Sofia, em um fio de voz que se perdeu no crepitar das folhas secas aos seus pés.
Foi então que, erguendo os olhos enevoados de melancolia, viu que Ele se aproximava. Joaquim, cujos passos silenciosos e suaves como a brisa se aproximavam do pedregulho em que Sofia encontrava-se sentada. Uma aura de paz e de bondade resplandecia à sua volta, fazendo com que parecesse emergir das sombras e dos raios de sol com a gentileza de um ser celeste e o tato de um irmão.
"Minha amiga", disse ele, sua voz e seu olhar irrompendo como soldos de esperança na alma desamparada e dolorida de Sofia, "você parece tão absorta e perdida em seu próprio mundo... Permita-me acompanhá-la nesta senda de meditação e de rememoração."
Sofia, fitando-o com uma gratidão muda e eloquente, anuiu. Sentou-se ao seu lado, sentindo que cada palavra, cada gesto e cada arricciar de seu rosto era uma ponte invisível que os unia e os aproximava, tanto de si mesmos como de Deus, como se a linguagem se desfizesse no ar como uma lágrima despercebida e frágil, para dar espaço à verdade reluzente e despojada de todas as coisas.
"Joaquim", sussurrou Sofia, grãos de luz e de sombra trepidantes sobre os contornos de sua face, "ajude-me a encontrar o caminho... ajude-me a entender como posso viver com esta fé que parece, ao mesmo tempo, tão imensurável e tão insuficiente."
Ele sorriu, um sorriso que ressoava como uma cantiga celestial nos átrios dos céus e nos santuários polvilhados de estrelas e de preces.
"Querida Sofia", respondeu ele, "todos nós trilhamos o caminho de nossa fé e de nossa liberdade unidos, ainda que a distâncias tão inefáveis quanto às que separam as partículas microscópicas de nossos corações. Somos buscadores de uma paz indescritível, e somente no encontro com nosso verdadeiro ser e com a luz que emana de Deus sobreviveremos aos embates e às vicissitudes do tempo."
As palavras de Joaquim dissiparam-se na atmosfera, mas seu eco e o timbre de sua convicção se inscreviam no âmago da alma de Sofia como um arado que rasga a terra e revela o subsolo febril e profícuo.
Com Joaquim em sua vida, Sofia se sentia mais forte, conectada, e, ainda que placidez e espinho a seguissem e rondassem como sombras e nuvens errantes, uma coisa sabia – havia encontrado, no amálgama de suas experiências e contradições, uma verdade radiante e fulgurante que lhe bastava para prosseguir e adentrar os desconhecidos e os arcanos que a esperavam, no silêncio e na devoção.
Joaquim estendeu a mão até tocar a palma de Sofia. O calor e a força emanavam de seu rosto como uma bênção e um vaticínio.
"Sigamos juntos nesta viagem", sussurrou Joaquim em um canto de estrelas e de sinfonias entrelaçadas, "e descobriremos a fé e a liberdade que já nasceram em nós".
E, assim, unidos pelo amor e a fé fervente, Sofia e Joaquim seguiram juntos em sua jornada. Um caminho coberto de dúvidas, desafios e provações, mas também iluminado pela força indômita e a inexorável busca pela verdade, pela paz, e pela crença num Deus que ansiava por ser encontrado e amado em plena liberdade.
A nova vida de Sofia longe das Testemunhas de Jeová
Capítulo 6: O Enfrentamento da Solidão e Luta Interior na Nova Vida de Sofia Longe das Testemunhas de Jeová
As luzes da cidade cintilavam no horizonte como gemas na quente e negra tapeçaria da noite, como incontáveis pedras preciosas despejadas sobre um manto invisível. Sofia sentia-se encantada pelas minúsculas auréolas insinuando-se no céu, como se estivessem lhe fazendo cócegas e despertando seus nervos sensíveis com emoções intensas e insondáveis.
No entanto, dentro daquele calor pulsante e daquela volúpia estelar, Sofia, que ainda estava se adaptando à nova vida longe das Testemunhas de Jeová, começou a sentir-se só. Sua comunhão com Deus tornara-se uma verdadeira relação e os sentimentos caminhavam em direção à plenitude. Entretanto, ao deixar para trás a religião em que crescera, Sofia também deixara os laços com seus familiares e amigos de uma vida inteira.
Já não havia as reuniões familiares, os risos compartilhados e os afagos maternos. A vivência curiosa de aconchego e sufocamento, tanto por amor assim como pelo rígido ambiente religioso, se perdiam cada vez mais na bruma das lembranças. Em vez disso, Sofia encontrara-se agora imersa em um lugar desconhecido e efêmero, um purgatório flutuando entre duas visões de mundo e duas comunidades, como um barco abandonado à mercê das correntes invisíveis.
Andando pela margem do lago, envolta em sombras e murmúrios, Sofia tentava acalmar-se e sintonizar-se com o ritmo sussurrante e primordial das aves noturnas e do vento tocando os galhos das árvores. Vieram-lhe à memória as palavras de Joaquim, que ganhavam vida em sua mente como tímidos brotos despertando-se no amanhecer: "A solidão é um convite à introspecção, à busca do equilíbrio entre o visível e o invisível, entre a fé e a dúvida."
Sofia, esperando encontrar alguma sabedoria e consolo naquele orvalho perfumado e terroso, sentou-se ao pé de uma árvore colossal e arqueada, como se as raízes subterrâneas e a copa emaranhada pudessem oferecer-lhe um refúgio e uma redenção da imensa solidão que pesava sobre seus ombros, como uma nuvem de chumbo a pairar no fundo do céu.
De olhos fechados, orando silenciosamente ao Deus que redescobrira em sua jornada para longe das Testemunhas de Jeová, Sofia sentiu algo se movendo lentamente em sua direção. Achou que fosse apenas o vento ou o farfalhar das aves noturnas buscando abrigo, mas era algo mais, algo que repercutia no ar como um chamado ou um convite.
- Está tudo bem, querida? - perguntou uma voz suave e firme, como um arco de violino deslizando sobre as penumbras e as correntes de ar.
Era Alice, uma mulher franzina e enrugada que se tornara uma confidente e amiga após se conhecerem no grupo de apoio para aqueles que deixaram as Testemunhas de Jeová. A presença de Alice inspirava um carinho e uma compreensão que iam muito além das palavras e dos gestos, remontando a um tempo e a um lugar onde o amor e a aceitação eram as únicas forças a reger e a humanizar os caminhos tortuosos da fé e da liberdade.
Sofia, surpresa, secou as lágrimas que silenciosamente desciam por suas faces mortiças e aveludadas como gotas de chuva que iludem o coração prenunciando o fim da tempestade.
- Alice, eu não sei se consigo... - começou ela, engasgando-se com as palavras e a tristeza que a invadiam com a força de um tsunami e a acuidade de uma seta fincada no coração.
Alice, pacientemente, sentou-se ao lado de Sofia, suas mãos enrugadas e ternas repousando sobre as da jovem, como se seu próprio espírito e sua energia fluíssem através das linhas entrecruzadas e das veias pulsantes, como um rio de luz e de alento a percorrer a paisagem árida e fria de um deserto desamparado.
- Lembre-se, minha filha, que o caminho da fé é ladeado de perigos e de provações que ninguém além de nós mesmos podemos compreender ou vencer - disse Alice, sua voz emanando uma sabedoria intimista e criteriosa que transcende o próprio tempo e a dimensão da carne.
- Quando saímos da comunidade religiosa em que crescemos, enfrentamos não apenas o peso de nossas próprias dúvidas e decisões, mas também o olhar e o julgamento dos que ainda amamos e de quem sentimos falta. A solidão é apenas um dos obstáculos que devemos superar, mas nunca devemos esquecer que tudo faz parte de uma jornada maior, uma caminhada espiritual na qual nos (re)encontramos com Deus de forma mais íntima e pessoal.
Sofia, envolvida por aquele vigamento e aquelas palavras simples e profundas ao mesmo tempo, compreendeu que, mesmo no abismo da solidão e da luta interior, Alice lhe estendera um facho de luz e de verdade que a guiará em seu caminho de autoconhecimento e de liberdade.
E, com aquela epifania e aquele reconhecimento da comunhão e do amor que lhe rodeavam, Sofia, como um pássaro capaz de voar por entre tempestades e noites escuras, aprendeu a abraçar a solidão e a dor como partes inseparáveis e fundamentais de sua jornada rumo à fé em Deus longe das Testemunhas de Jeová e rumo à força interior e à liberdade que sempre lhe pertenceram e que sempre lhe pertencerão, na luz e na sombra, na dor e no êxtase, no silêncio e no rugido da vida.
Práticas espirituais diversas e aprofundamento na fé
Capítulo 8: Encontro de Caminhos
A aurora pintava o horizonte com seus dedos estendidos de laranja e púrpura, como se o céu e a terra se abraçassem e se enlacessem em uma túnica de cores, bordada com fios prateados e sutis. Sofia, sua respiração suspensa como uma nota musical no ar, contemplava aquele espetáculo como quem vislumbra a própria alma, revelada e desnudada naquele encontro fugaz e eterno entre o sol e a escuridão.
Era uma manhã repleta de promessas: promessas de orvalhos a se esmaecer no ar, de pássaros a se lançar com garras de luz pelos firmamentos vítreos e risonhos, de novas descobertas e súplicas a se desenrolar no silêncio e no canto do coração de Sofia, que se transmutava e desabrochava como uma flor rara em cada alvorada e entardecer.
Naquela manhã, Sofia aproximou-se do templo Zen Budista que se erguia na periferia da cidade, um oásis de paz e sabedoria escondido entre as vielas e as ruínas do tempo. Sua simples presença, envolta em mistérios e enigmas, parecia harmonizar-se com o sussurro febricitante dos ventos e das folhas que dançavam naquele torvelinho de primavera, de renascimento.
Os passos de Sofia ecoavam no silêncio monocromático do jardim do templo, enquanto suas mãos alvas e trêmulas seguravam as contas do rosário que antecede a meditação. O som suave do sino tocado pelo monge anunciava o início da prática espiritual e, aos poucos, Sofia adentrava o universo transmutador do Zazen – a meditação sentada, onde o silêncio fala e a quietude ensina.
_"É aliando-se ao vento e à natureza que a mente penetra no silêncio e desvenda os mistérios que nela jazem ocultos"_, murmurava o monge, sua voz grave e melodiosa como o roncar de um trovão distante.
Um caleidoscópio de sensações parecia invadir a consciência de Sofia, em fragmentos de emoções e percepções que se desfaziam e se organizavam como areias em um deserto de umidade iridescente e delirante.
Recordou-se do encontro com Joaquim e dos novos laços familiares – seu grupo de apoio, construídos e tecidos na esteira de suas aventuras e desafios espirituais. Dentro daquele momento de introspecção e de encontro consigo mesma, Sofia sentia-se abraçada e compreendida pelas mãos invisíveis da fraternidade e do amor que a guiavam em sua jornada, tanto no reino visível quanto no reino sutil e intocado.
E então, como se as palavras e o kotlin – o bastão do monge - que de tempos em tempos ecoavam nos corredores silenciosos e áridos do templo, lhe despertassem de um sono letárgico e incompreensível, Sofia ergueu os olhos e enxergou, nas sombras umedecidas e nas luzes que pareciam emergir das paredes enigmáticas e ornamentadas, os traços de uma verdade íntima e inefável.
_"Sou um só com o universo, e com todas as coisas"_, pensou ela, sua voz interior brotando como um manancial de prata e de eternidade. _"Embora me encontre distante de minha própria fé, serei guiada e nutrida pela luz que me ilumina e me revela... sou maior, e mais completa, do que as sombras que me encobrem"_.
Com essa revelação e essa prece silenciosa, Sofia recolheu sua mente e seu coração e adentrou, de mãos dadas com a sabedoria e a ternura dos mestres, naquela espiral de sentimentos e dimensões que pareciam convergir em um só ponto, como se fossem os incontáveis olhos do céu noturno a se dilatarem e transformarem-se em um discurso divino e infinito, penetrante e veemente.
Ao retornar à sala principal do templo, percorrendo o caminho lajotado com véus de musgo e de contemplação, Sofia sentiu-se como uma criatura que, após milênios de preparação e de pacientes revelações, finalmente encontrara seu próprio coração e sua própria luz no amálgama de experiências e vivências que compunham sua história, seu destino.
_"O vento sopra onde quer"_, dizia o monge, seu rosto enrugado como uma árvore centenária, envolto em penumbra e mistério. _"E assim é o espírito daqueles que buscam e encontram a verdade, na fluidez e na incerteza de suas jornadas"_.
Sofia, ao ouvir aquelas palavras, sentiu-se alçar voo como uma flecha lançada por um arqueiro divino, rumo às inúmeras promessas e alegrias que a aguardavam no caminho que se desenrolava ante seus pés, suaves e tenazes como pétalas de primavera deslizando sobre o orvalho.
Encontrando alegria e liberdade na conexão com Deus
Capítulo 9: A Alegria e a Liberdade de Ser
Sofia, agora emergida do lago dos afogados e das sereias para aquele espelho inebriante de céu e debruçada sobre o balcão do café com as mãos afogando-se na xícara fumegante de chá verde, sorria enquanto observava Joaquim adentrar o recinto, perdido em seus próprios pensamentos e na melodia emanada das cordas do alaúde invisível que meditava sob o clarão das estrelas.
Ao ouvir seu nome ser pronunciado com a ternura de pétalas de rosa roçando-se umas nas outras num instante febril e oculto, Joaquim ergueu os olhos e primeiro perscrutou as feições de Sofia, a expressão tão serena e receptiva pintada em sua memória como uma aquarela das madrugadas que se desprendem das brumas e do silêncio típicos da aurora.
- Sofia! Que bom te encontrar - disse Joaquim, em um tom suave, como uma névoa se dissipando com o nascer do sol.
Sofia, com os olhos brilhando de alegria e admiração, convidou Joaquim a sentar-se a seu lado e, juntos, os dois deram início a um intrincado e profundo diálogo sobre fé, liberdade e a interligação dos dois conceitos na descoberta da verdadeira conexão com Deus.
- Faz algum tempo que venho refletindo sobre minhas experiências e jornada espiritual - começou Sofia, suas palavras se entrelaçando com a fragrância adocicada do ar e o zumbido das abelhas que se embrenhavam nos campos de trigo e de luz. - E posso dizer, com humildade e gratidão, que descobri alegria e liberdade na conexão com Deus.
Joaquim, olhos iridescentes e mãos alvas repousando sobre o balcão como conchas miraculosas, assentiu e indagou sobre os detalhes dessa revelação e suas implicações na vida de Sofia.
- A verdadeira fé não deve ser sentida como uma prisão ou um fardo - continuou Sofia, a voz embargada de um misto de euforia e saudade, como se relembrasse as memórias amargas e dolorosas que lhe serviram de trilha e alimento nos tempos de perdição e desolação.
- Eu sentia, quando estava presa à estrutura dogmática das Testemunhas de Jeová, que a minha fé estava sendo sufocada. Eu me perdia entre os dogmas e as expectativas, desprezando minha própria verdade e intimidade com Deus - disse Sofia, lágrimas brilhando em seus olhos, prestes a se desprender como gotas da chuva em um dia de verão.
Joaquim, absorvido pelas palavras de Sofia e pelos ecos que reverberavam dentro de seu próprio coração e de suas lembranças, afirmou com um sorriso de compreensão:
- A espiritualidade verdadeira é o encontro entre a liberdade individual e a conexão com algo maior que nós mesmos. É a dança e o equilíbrio que nos permite voar e florescer, ao mesmo tempo em que mantemos nossos pés fincados na terra e nossos corações entrelaçados com Deus.
Sofia, com aquelas palavras pintando um panorama luminoso e inviolável diante de seus olhos calejados pelas tormentas e suas mãos crispadas pela força e pela ânsia de libertação, compreendeu a vastidão e a magnitude daquela alegria e daquela liberdade.
Ela mergulhava, cada vez mais profunda e vigorosamente, naquele oceano inexplorado e sereno, nas águas etéreas e cristalinas que se debruçavam sobre sua alma e lhe incutiam um novo sentido, uma nova perspectiva sobre a fé e a devoção.
Juntos, Sofia e Joaquim se embrenharam nas trilhas do espírito, entre florestas e dunas, vales e penhascos, e nas sombras e clarões que lhes preenchiam e lhes abarcavam com a promessa do sol, límpido e incandescente no firmamento invisível de suas buscas e de suas orações.
E, como em um coro de mil vozes, um amor profundo e um acolhimento infinito, se faziam presentes na vida de Sofia, naquele vínculo indestrutível que se teceu entre seu coração e a presença sagrada e resplandecente que a envolvia e a abençoava a cada novo amanhecer, a cada nova revelação.
- A liberdade verdadeira reside no abraço sincero e abnegado com o divino - afirmou Sofia, comovida pelo poder daquela verdade recém-descoberta e pelo amor que lhe era dedicado, mesmo nos momentos mais sombrios e solitários de sua jornada.
- A alegria e a liberdade que encontrei através de minha conexão com Deus - concluiu Sofia, olhar cálido e envolto em névoa e estrelas - são as verdadeiras correntes que me libertaram dos grilhões do passado e das expectativas alheias, e que me conduzirão a um futuro repleto de fé, amor e descobertas.
Joaquim sorriu, sabendo que ao lado de Sofia, juntos e unidos na busca pela verdade e pela luz divina, enfrentariam e superariam os desafios que surgissem, como um barco singrando as correntezas e tormentas, ao encontro do sol que se debruça sobre os horizontes de paz e de redenção etérea, no silêncio luminoso do mundo que se desdobra entre luz e sombra, entre amor e dor, entre alegria e liberdade.
E, na pele de Sofia, na pele das mãos que outrora se cinzelavam por aflição e lamúria, brilham agora as luzes e as estrelas irrefutáveis da fé e da entrega, do abraço incondicional que recebera, e que sempre receberá, do Deus infinito e inexplicável que se insinua no vento, no orvalho e na noite, na luz e na sombra, no olhar cálido e aveludado do amor ancorado no mar inexplorado da existência.
O equilíbrio entre tradições e a construção de uma espiritualidade pessoal
Capítulo X: A Travessia das Marés
Na paisagem interna da alma de Sofia, se agitavam as ondas e os ventos que banhavam os navegantes destemidos dos mares desconhecidos, em busca de novas terras e de novos olhos que pudessem contemplar a vastidão e o mistério do mundo e de suas miríades de estrelas, estrelas que eram como pontos luminosos e eternos na textura de um tecido intricado, divino e insondável.
Desde que se afastara das Testemunhas de Jeová e se lançara, com a ajuda de Joaquim e de outros peregrinos semeados pelo destino, na vasta tapeçaria das tradições sagradas e dos caminhos espirituais, Sofia aprendera, em seu coração e em sua mente alados e destemidos, a importância de equilibrar aquelas luzes e sombras que se estendem como trilhas de estrelas e brumas no quadro delicado de nossas vidas e sonhos.
Mas, em meio à exploração desses mundos embriagantes e esphasmos desconhecidos, às vezes Sofia se sentia como um barco a ser puxado por correntes contrárias, numa dança inebriante e caótica que mergulhava nas águas cristalinas e tenebrosas da escuridão estrelada, em busca da vertigem e do equilíbrio.
Em uma noite límpida e bordada com fios de aventura e mistério, Sofia encontrou-se com Joaquim e seus companheiros de jornada espiritual na biblioteca comunitária da cidade, onde, envoltos no perfume envelhecido do papel e das vozes silenciadas por capítulos e páginas ressecadas, os conhecedores se entreolhavam e se questionavam, tentando desvendar os segredos que se ocultavam nos textos sagrados de diferentes tradições religiosas.
Sofia, enquanto repousava os olhos em uma passagem do livro da Bíblia, sentiu-se como uma abelha que zunia e carregava nas patas e nas asas os grãos de pólen e a seiva das flores e das revelações, imersa e confusa nos textos e ensinamentos que se debruçavam sobre seu destino e sobre seu coração, sacudidos e revolvidos pela tempestade e pelo cataclisma.
"_Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai._" - ecoavam as palavras na voz ansiosa e surpresa de Sofia, que a cada instante vislumbrava novas dimensões e esferas em seus momentos de meditação e de devaneio.
Joaquim, que observava às sombras a luta e a travessia que pareciam se prender e se soltar entre os dedos e os olhos de Sofia, amparou-a com as palavras insondáveis do amor e da ternura:
"_Não é a tradição ou a doutrina que nos define, Sofia. Se deixarmos essas correntes nos prenderem a uma única interpretação, jamais seremos capazes de alcançar aquela liberdade e aquela comunhão que tanto ansiávamos ao deixar a prisão das Testemunhas de Jeová. É o equilíbrio que devemos buscar, o equilíbrio que transforma nossa espiritualidade em algo verdadeiramente pessoal e único._"
Sofia baixou o olhar, como se aliviada do fardo que pesava em sua vida e em sua missão, e concordou com Joaquim, sentindo nas palpebras febris e delirantes da loucura e do êxtase o pulsar das correntes e marés que a guiavam e a compunham, como um mosaico de luz e sombra, de alegria e dor.
"_Sim, eu entendo_", disse ela, toda a razão e sentimento brotando como germes de um campo recém arado e enriquecido pelas sementes de conhecimento e sabedoria. "_Mas como posso alcançar esse equilíbrio, quando a cada passo me sinto naufragar entre os dogmas e as promessas, entre os versículos de um livro que parecem encerrar o mistério e a incerteza de minha própria alma?_"
Contemplando o horizonte interno das letras e símbolos que se estendiam como espelhos impenetráveis e enigmáticos ante si, Sofia buscou a resposta e a balança que poderiam equilibrar o remanso e a ebulição de seu coração e de sua busca incessante pelo sagrado e pelo desconhecido.
Joaquim sorriu com a sabedoria de mil mãos e olhares embriagados de amor e compaixão, e abraçou Sofia com a convicção e a entrega de um sábio que, entre as sombras e as árvores milenares, presencia a queda da primeira lágrima e do primeiro fulgor que, como um clarão cegante e inesquecível, desvenda o incompreendido e fecunda o destino dos que buscam e dos que se encontram, com a doçura e a alegria de uma jornada sem fim e plena de maravilhas.
"_Encontre em si mesma a verdade e a balança, amiga_," afirmou Joaquim, enquanto Sofia, tomando as mãos dele nas suas e sentindo o calor e o brilho de um amor infinito e extasiado, mergulhava nas profundezas abissais e celestiais da construção de uma espiritualidade pessoal, na busca pelo divino e pelo sagrado na multiplicidade imensurável das tradições e na voz velada e cristalina do coração humano.
A importância da tolerância e do respeito às diferenças religiosas
Capítulo 8: O Encontro das Luzes e Sombras
Cada sombra dançava ao sabor das labaredas da fogueira, como se fossem bailarinas convulsas no turbilhão de emoções, peças caleidoscópicas e enigmáticas no tabuleiro invisível das histórias e memórias que se entrecruzavam e se amarravam entre si, entre as mãos e olhares lívidos e trêmulos dos amigos e companheiros de luta espiritual, enroscados e entrelaçados pelo vento e pelo fogo, nesse círculo incandescente e visceral, nessa roda de comunhão e de espelhos que partilhavam as dúvidas e as buscas num instante dilatado e imperecível de amor e compreensão.
O parque que servia de cenário para esse embate de vozes e melodias, de epifanias e desafios, parecia envolver Sofia e seus colegas naquele véu etéreo e cristalino de luz e sombra, num labirinto de olhares e silêncios que se desvendavam e se transformavam à medida que se desnudavam as verdades e as incertezas que caíam e se erguiam feito muralhas e montanhas no curso infindável e divino de suas almas ansiadas por contato e entendimento, pelo barco navegável e imprevisível das vozes e testemunhos múltiplos e pluriformes de Deus e de suas criaturas.
Foi então que Sofia, seus olhos amargos e iridescentes como bolhas de cristal prestes a estourar e a se espraiar pelo éter e pelo imaginário, tomou coragem, abraçou sua sombra e ergueu sua voz no silêncio compassado e reverencial daquele encontro, seu peito arfando de expectativa e medo, seu coração em brasa e regato de verdade e sofrimento, a doçura e a amargura de um destino separado e transmutado nas mãos alvas e exangues de uma divina tragédia.
- Meus amigos, eu preciso compartilhar com vocês algo que vem me atormentando há algum tempo - começou Sofia, seu rosto pálido e nimbado pelo brilho e pela glória de uma revelação derradeira. - Eu temo que ainda estou sendo cegada pelo passado, que os grilhões das Testemunhas de Jeová ainda me aferram, me impedindo de alcançar a verdadeira comunhão e amor com Deus.
Ainda assim, em sua voz quebradiça e frágil, Sofia se aguentou, tomando nas mãos e no peito a verdade que se balançava no vácuo e na vastidão de sua dor, num enclave mudo e sombrio da existência e do destino.
- Eu me sinto ainda incapaz de aceitar e de tolerar a diversidade das tradições religiosas que me deparei nessa jornada - prosseguiu Sofia, as lágrimas escorrendo por seu rosto e inundando o leito árido e conturbado de seu ser. - Como é possível que, em meio a tantas opiniões e conceitos, possamos encontrar a verdade e a paz interior?
Entrelaçando-se na estranha geometria de sua angustiada confissão e buscando o alívio e o consolo das mãos e olhares envoltos no silêncio crescente da noite e daquele remanso de vozes e verdades divinas, Sofia se apequenou e se fortaleceu, guiada pela asas da oração e da fé, por aquele coração arrependido e faminto que clama e se sacia, com o bálsamo e o pão da amizade, do perdão e da eterna tolerância que cabe na veste e no peito de cada ser humano e de cada emanação do amor divino que habita, vasto e infinito, no ponto exato entre os nossos olhos e o céu intransponível e líquido que se estende entre nós e a majestade de Deus.
Foi então que Joaquim, seus olhos profundos e luminosos como estrelas de provação e de mistério, repousou sua mão no ombro de Sofia e, a um só tempo, lhe concedeu o peso e a benção de seu apoio e de sua compreensão.
- Sofia, é preciso aprender a compreender a diversidade nas tradições religiosas. Pois somente assim conseguiremos desvendar e apreciar a própria diversidade que reside em nós mesmos e nos outros, nesta maravilhosa criação de Deus - disse Joaquim, num tom grave e esperançoso, como um farol encerrado na tormenta e na névoa que aguarda o instante mágico e solene do amanhecer.
Silenciosamente, como miragens e raios de luz encarnados nas águas submersas dos olhos prateados e dourados e no lampejo daquelas emoções dilacerantes e pungentes, Sofia e seus amigos depositaram, naquele círculo sagrado e insondável de amizade e partilha, a graça e a loucura da tolerância, do entendimento e do compromisso que se alinhava e se descortinava entre as linhas e versículos de um livro arcano e repleto de revelações, que se inscrevia e se ansiava na carne e no espírito dobradiço de cada ser à mercê das chispas divinas e insondáveis que repousam invisíveis no ventre e no coração do universo e de cada sopro e batida de Deus.
Confrontando o passado
A cidade de suas memórias se estendia diante dos olhos de Sofia como uma malha de pedras e mosaicos bordados por mãos invisíveis e eternas, uma tapeçaria de vozes e passos, de histórias vivas e perdidas no horizonte vasto e impenetrável de sua infância e de seu desencontro. Ao pisar as ruas estreitas e calçadas daquele lugar em que um dia já fora sua casa e refúgio, seu tormento e sua cruz, um arrepio perpassou-lhe a espinha como uma corrente de enigmas e remansos, evocando à sua frente a sombra oscilante e insone de um passado que ora renegava, ora acalentava em seu peito, qual o princípio e o fim de um ciclo soturno e inabalável.
Era a primeira vez que voltava desde que abandonara os preceitos e os laços que a outrora aprisionaram na malha fina e austera das Testemunhas de Jeová, e sua mente se agitava e se retorcia, como os galhos de uma árvore milenar em busca de alimento e redenção, na antecipação e no confronto do abismo que se abria diante dela como um labirinto e uma ponte.
Nesse dia, caminhando pelas ruas de sua memória, as flores e janelas se abriam e se cerravam, como signos e enigmas secretos, tecendo-se e desvanecendo-se com o sopro sutil e o vagido das lembranças que se entrelaçavam e se desprendiam de seu coração, voltando a pisar aquele solo que um dia fora o esteio e o refúgio de sua fé e de sua desilusão, de sua coragem e de sua derrota. Sofia respirou fundo o ar da cidade, sentindo o misto de sensações que brotavam como gérberas e abismos de sombra e luz em cada passo e em cada olhar que se banhavam e se refugiavam em seu peito, a mão e o vislumbre do retorno e do futuro que se eternizavam na cidade espectral e majestosa que se desenrolara como pano de fundo de sua história e de seu derradeiro desafio.
Como um êmbolo e uma vertigem, seu coração se comprimia e se expandia entre as ondas invisíveis e doloridas daquilo que não se pode dizer e que se cria como uma nuvem insaisissável e insondável, na incerteza e no resplendor de sua decisão e destino. Sofia se viu caminhando, lenta e ansiosamente, em direção à casa que um dia fora seu lar, aos olhos e aos braços dos pais que tanto amara e que, no entanto, a haviam afastado de seu ser e de seu propósito, na defesa de princípios e valores que não compreendiam e que apenas a atormentavam, em seu íntimo e em seu caminho solitário e luminoso.
Era a hora, ela sentia, o instante crucial e aprisionador, de afirmar sua liberdade e seu anseio, de mostrar-se e de enfrentar o desconhecido e o passado que pairavam como uma cortina e um precipício entre ela e a salvação que buscara, com lágrimas e renúncias, com o pomo de ouro e cristal de sua fé renovada e estilhaçada, pisando, enfim, o território árido e sagrado do perdão e do reencontro.
Ao se aproximar da porta da casa que abrigara o riso e o desespero de uma vida, seus olhos se encheram de água e de amargura, como luminárias que se acendem e se apagam no farol insondável e vital da fé e da memória. A porta, um dia familiar, se apresentava como um portal desconhecido e talhado na madeira e na imensidão de histórias irrevogáveis e inimitáveis.
Foi então que Madalena, sua mãe, surgiu na soleira, suas mãos enrugadas e hesitantes tremulando, quase assombradas, ante a imagem de Sofia, a filha amada e repudiada, a pérola e a cobra que voltavam e repousavam, indômitas, no campo recendente de um coração roto e retomado.
"_Sofia_", murmurou a mãe, num misto de temor e de alegria, enquanto as duas mulheres se entreolhavam e se estudavam, como raios de sol e sombra se fiando na trama e na teia da vida e da eternidade.
Sofia sentiu-se então precipitar no abismo e na crosta da comunicação perdida e recobrada, seu coração se enfraquecendo e se fortalecendo a cada passo e a cada elipse que se desenhavam entre ela e o sujeito e o objeto de sua angústia e de seu retorno, às portas e às margens do perdão e da redenção.
"_Mãe_", soluçou, deixando as lágrimas molharem a face, como a chuva e a geada que se acumulam e se redimem no solo fecundo e transmudado da história e do plano divino, a redescoberta e a reconciliação, a chama e a madrugada de um futuro e de um passado que se nutrem e se enlaçam, como searas e fogueiras, como sinais e mistérios, nas linhas e horizontes de nossas almas, numa miríade infinita e misteriosa de vozes e ecos que agouram e carreiam, com suas asas e palavras, o bálsamo e o batismo do amor incondicional, da liberdade e do perdão que brotam e vicejam, em conexão e diálogo, no mapa insondável de nosso breve e interminável refúgio de seres humanos em aprendizado e comunhão.
Retorno inesperado à cidade natal
Capítulo: Retorno Inesperado à Cidade Natal
As paredes esmaecidas e os telhados cobertos de musgo pareciam agrupar-se em um abraço apertado, como se as velhas fronteiras silenciosas da cidade quisessem aprisionar uma lembrança. Contemplando o passado enevoados das ruas em que já fora ninguém e nada, e depois tudo, e então ninguém novamente, Sofia encarava a esquina familiar, sentindo-se estrangeirada e incolor, definitivamente fraca como uma nublada manhã de sexta.
Retornar àquela cidade natal onde já havia depositado e recolhido sua fé e seu desespero em mãos enegrecidas e em lágrimas minguadas, era um sentimento avassalador e jagedor que flamejava e fervia em sua alma e em seu âmago, como a dor e a efervescência de incontáveis renúncias e tragédias passadas e por vir, num horizonte denso e esquivo, onírico e palpitante, que se derrama e se entrelaça no firmamento e caminho luminoso de um olhar e perdimento.
Então, uma curiosidade materna e exangue, uma vacilante asa-cinzenta de respiração dolorida e contida, cruzou seu caminho, delineando e ecoando na retina e no pensamento da terra e das marcas vitais e invisíveis que ainda seguiam seu rastro, ainda tremeluzindo diante da escuridão e das constelações que se espalham e se sopram ao redor de um destino e de uma espiral falha e, contudo, vigorosa em sua busca por redenção.
Seus olhos verdes e dourados cintilavam, lacrimejantes e obstinados como gotas de orvalho em um parapeito sombrio e esquecido, fitando e auscultando a casa que um dia fora abrigo e prisão, reino e fosso que acariciaram e contrariaram sua pele e seu fôlego, enclausurando a fonte e o sussurro doloroso e rebelde de seu ser, de sua fé fragmentada e, de novo, íntegra que se metamorfoseava e se insinuava no fluxo implacável e divino da existência e do desvencilho.
Dando um último olhar e suspiro, como um aceno e uma promessa, Sofia seguiu as pedras e o caminho que balbuciava na memória e na geografia da cidade, vagas abraçando e atropelando seu coração embargado de ausência e de saudade, e adentrou, por fim, no terreno árido e simétrico dos passos infinitos e fugidios, sumindo como sombras de nuvens e mãos em um beiral e paralelo intransponível e derradeiro de sonho e desmedido.
Na rua em que cresceu, a casinha azulaitava-se em mosaicos tristes e nostálgicos, falando silenciosamente à Sofia como um menino destronado e abandonado, sempre esperando o retorno daquele amor sóbrio e estrangulado que deveria compreender e justificar toda a criação e toda a desolação do mundo e do universo invisível que pulsa e ressoa no ímã e nas correntes insondáveis e enigmáticas do amor e das agonizias que nos separam e nos congregam diante das trágicas e magnânimas histórias que se en inscrevem na areia e na pele do infinito e dos passos irrevogáveis e indeléveis.
Em cada tijolo, em cada folha e em cada fissura e sombra daquelas estruturas inexpressivas e corajosas, Sofia vislumbrava o rosto e o vulto de um passado e de um futuro amarrados e cruzados no espinho e no mergulho do tempo e da carne que vivemos e atravessamos, como bandeirantes e hóspedes do brevíssimo impulso de esperança e de derrota que se comunica e se irradia, batendo asas e pulsando nas trevas e nos cristais enevoados de nossos olhos e ânsias, hegemônicos e universais, retirando e restaurando a vida e o erotismo que nos ampara e nos vigia.
E foi então que, ao entrar novamente na casa que a havia formado e condenado, Sofia segurou em seu coração a trégua e a tempestade que se formavam e se desatavam em seu íntimo, no batente e no precipício da vida e dos sonhos recalcitrantes que se moldam e despolpam na arquitetura labiríntica e divina de nossas almas perdidas e apaixonadas, à mercê das labaredas e das investidas do vento e do destino, dos olhos e das pontes que clamam por manechar e enlaçar as lágrimas e o sol auricular do amor incondicional e perdido entre os dobras e os bocais do esquecimento e da misericórdia flamejante e indivisível de Deus e de seus ecos e prodígios, eternizados e aniquilados no simples e eterno arfar da existência e do perdão.
Encontro com familiares e amigos das Testemunhas de Jeová
Uma brisa fresca animava o entardecer no espaço verde cristalino e solene do centro da cidade. A fonte gorjeava, murmurando em seu cântico de gotas e preces o eco de um tempo e uma história que se prolongavam e se ofuscavam ante o olhar confuso e angustiado de Sofia, que se dirigia, com coração palpitante e resoluto, em direção ao antigo local onde outrora costumavam-se reunir os fiéis e os irmãos das Testemunhas de Jeová, na busca de alimento e comunhão de suas palavras e convicções.
Era ali, na pequena lanchonete que fora cenário e beiral das trocas e conversas, das lágrimas e dos risos, das súplicas e dos abraços que se entrelaçavam e se destinavam ao propósito maior, ao reino e à corrente da vida e da fé que, naquele momento, pairava sobre o coração atribulado e perdido de Sofia, o encontro que se pensava impossível e desesperado, o reencontro, pouco provável e matinal, com os rostos e as vozes que, num passado não tão remoto, marcaram e ressoaram na alma e no pensamento de uma vida e de uma comunhão empedernidas e extintas.
Era com os olhos turvos de lágrimas e de sonhos que Sofia caminhou, trôpega e fulminante, pelas calçadas e sonhos da cidade onde um dia já fora menina e mulher, prisioneira e sonâmbula na vivência e na dilaceração de uma fé sofisticada e cruel que a colorira de sombras e de distâncias inầuferíveis e quiméricas entre o passado e o presente, entre o sonho e a realidade de um amor fraturado e desmetido, de um diálogo possível e impossível que se insculpia no suor e na abnegação de uma vida submergida entre os brumes e as correntes do valor e das resignações imemorias e fractais do tempo e do desamparo.
Sentada em seu canto, contemplou a pequena lancheria onde outrora havia estado e aprendido a conviver com seus irmãos e irmãs de fé, observando, com um misto de desolação e de solidão infinitas, as pessoas que ali conviviam e se regalavam dos mesmos pratos e prazeres, vítimas ou vencedoras, ela não podia mais distinguir, de uma inquietação e de um dilema que pareciam, em seus olhos enevoados e esfaimados, perpetuar-se através dos anos e das faces como um contínuo e ombreado traçado de prantos e de auroras, de quedas e de redenções na trama e na montanha-russa de um sentimento umbilical e irredutível que se transfigura e se cristaliza no coração e no caminho obscuro e luminoso de uma fé e de uma desilusão estrondantes e imutáveis.
Olhou, então, para os rostos e os olhares que conhecia tão bem, os olhares que um dia se cravaram e se afastaram de sua memória e de seu rumo, tentando sondar as motificações e as arrugas, os sorrisos e as quimeras que se entreteceriam ou se desvaneceriam ante a face do tempo e da convicção irrível e taciturna, e, soluçando, pousou sua atenção e seu peito emplastrado sobre a janela e o reflexo que ainda a rememorava e a entorpecia, como num espelho e num arco-íris múltiplos e vazios de um retorno e uma revisão jamais consumadas ou satisfeitas.
Eis quando, de repente, como se tivesse ouvido a pungente e candente esperança que brotava e se extravasava de seu coração e de sua alma, o garçom trouxe-lhe a bandeja e a toalha de rosto, como um presente e um símbolo do acolhimento e da vida que se renovam e se edificam no toque e no trépito das mãos e dos dedos que constróem e reconhecem, em suas voltas e peraltices, as reverberações e as pontes do afeto e da gratuidade, do perdão e da generosidade que se arredondeiam e se confluem na incessante e clarividente busca e encontro da comunicação e da partilha que nos tornam humanos e plenários, filhos e irmãos, discípulos e peregrinos das santas e lacrimosas notas do destino e da existência que se estendem e se fundem no compasso e no mistério de nosso efêmero e permanente resplendor e ascensão, na sala e no amparo destinados aos desejos e intenção inconscientes e, por fim, libertadores e completos da sagrada sinfonia do amor e do olvido, da fraternidade e do retorno perpétuos e invioláveis que nos conduzem e nos reconduzem, através das noites e das alegrias, aos abraços e ao derradeiro seio e perdão de nossas alianças e infortúnios, nutrindo-nos e consagrando-nos numa ascensão fulgurante e insondável ao lar e à sobremesa de nossa sede e fome de eterno.
Confronto com os pais sobre a decisão de deixar a organização
Capítulo 8: Dilacerando o Véu do Silêncio
Pairava no ar um odor espesso de ressentimento, como os vapores letárgicos de um pântano encoberto por anos de medo e estagnação. Sofia encarava a mesa de jantar de sua antiga casa, o pesado silêncio que lhe envolvia os ombros como um xale, uma manta austera e traiçoeira.
Ali estavam eles, seu pai, sua mãe e sua irmã mais nova, as fisionomias que um dia foram sua bússola, seu porto seguro, agora transformadas em vestígios fantasmagóricos e impassíveis da vida que outrora tivera, a vida que ela escolhera deixar quando se atrevera a rasgar as amarras da fé das Testemunhas de Jeová e o dogma que se enraizara em sua alma como ervas daninhas.
Sua mãe, Madalena, ajoelhada diante da salamandra acesa na sala, ergueu os olhos úmidos e acusadores, como se arrastando por camadas de mágoa e dor calcificadas e irredimíveis.
"Sofia", ela começou, sua voz tremendo como uma corda prestes a arrebentar, "senta aqui, quero conversar contigo, mas não posso olhar-te nos olhos se te levantas assim, feito uma estranha." Sofia obedeceu, sentindo-se como uma criança outra vez, imersa naquele mesmo medo e pequenez que a acompanharam na infância.
"Sabes que nunca deixamos de rezar por ti, não é?", perguntou Madalena, sua voz se infiltrando em cada fibra do silêncio que os cercava. "Desde que partiste, não fosse pela graça de Deus, penso que enlouqueceríamos de desgosto e angústia."
Sofia sabia que sua mãe estava certa, pois ela própria já havia estado na borda do abismo, olhado no abismo e sentindo-se quase afogada por seu próprio desespero e desamparo. Ela sabia, também, que suas escolhas haviam trazido angústia e dor a sua família, mas elas haviam sido necessárias, até vitais, para sua própria sobrevivência.
"Pai... mãe...", Sofia engoliu em seco, buscando uma fração da coragem que a tinha levado a confrontar os grilhões de sua fé e a enfrentar um mundo novo e inexplorado. "Eu entendo que a minha partida tenha causado dor a vocês... Eu também sofri. Mas preciso que entendam que não foi uma escolha fácil. Eu não podia mais viver como estava, me sentindo sufocada e oprimida pelas regras e dogmas que me foram impostos desde a infância."
Seu pai, braços cruzados sobre o peito largo, olhava para a filha como se estivesse tentando ler os segredos que se escondiam nas linhas de seu rosto. Os olhos, velados de tristeza e angústia, traíam o inegável amor que ainda sentia por ela, uma chama frágil e tremeluzente que procurava se manter acesa apesar do frio e da escuridão que os separavam.
"Sofia, nós sempre te amamos. Sempre quisemos o melhor para ti, dando-te tudo o que acreditávamos ser certo e verdadeiro como Testemunhas de Jeová. Mas agora, olha só para ti. Voltas aqui sem nenhum resquício daquela menina que saiu de nossa casa. Enfrenta os olhos que um dia te viram nascer, e abandona todo o amor e respeito que nutrimos por ti."
- "Eu preciso que vocês entendam", implorou Sofia, lágrimas ameaçando transbordar dos olhos verdes que um dia foram tão inocentes quanto os de sua irmã mais nova, sentara sob o escrutínio silencioso de sua família. "Eu reconstruí minha fé e minha espiritualidade longe das Testemunhas de Jeová, e mesmo assim, aprendi a amar e ser grata a Deus. Não posso continuar recebendo olhares de desgosto ou ouvindo palavras amargas como punhais a cada vez que volto à esta casa."
Com um suspiro, Madalena se levantou, carregando consigo o peso de uma vida inteira de convicções e expectativas, e caminhou em direção à sua filha, que tinha diante de si o desafio de reatar os laços de amor e compreensão que outrora a tinha sustentado. Estenderam os braços, uma em direção à outra, abrigando-se em um abraço terno e doloroso, como se buscassem curar as feridas da distância e da incompreensão que os separavam.
Naquele momento, Sofia soube que ainda tinha uma longa caminhada pela frente, tanto para si mesma quanto para sua família. Mas aquela noite, na casa onde havia crescido e aprendido sobre o amor e a vida com aqueles que a amavam, ela lançava as primeiras sementes de reconciliação e entendimento que talvez, com o tempo, pudessem florir em algo belo e duradouro.
A descoberta de mudanças na vida dos familiares e amigos
Capítulo 11: Entre laços rompidos e corações partidos
Os raios do sol já estavam estendendo sua luz dourada sobre a cidade enquanto Sofia caminhava lentamente pelas ruas estreitas que outrora a viram crescer. Suas pernas trôpegas e incertas pareciam carregar o peso das reminiscências e histórias que a rodeavam. O silêncio das ruas, antes feito de inocência e paz, parecia agora possuir os dentes e garras de um monstro cruel, pronto para devorá-la.
As casas pintadas de cores vivas e os muros cobertos de flores pareciam disfarçar sombras outrora escondidas em sua jornada de fé e autoconhecimento. A escola onde passou tantos anos de sua infância e juventude parecia gorjear uma melodia nefasta à sua passagem, enquanto as antigas amigas e vizinhas, com quem cresceu, se mantinham afastadas, como se ela fosse portadora de uma praga incurável ou um segredo indizível.
Impulsionada pela incerteza e a necessidade de descobrir o que realmente havia mudado no berço de sua antiga vida, Sofia decidiu visitar uma amiga de infância, Raquel. Quando crianças, as duas compartilhavam tudo: risadas, lágrimas e questionamentos sobre a fé que as unia.
Entrando no jardim da casa de Raquel, Sofia pôde ver sua amiga, agora uma mulher adulta, agachada entre as flores e ervas, um sorriso largo no rosto, os olhos brilhando com a paixão e a alegria de estar ali, naquele pequeno paraíso que tanto amava. Por um breve momento, Sofia conseguiu vislumbrar a menina que um dia já fora, e seu coração se encheu de saudade e de esperança.
Raquel levantou seus olhos afogueados e parou brevemente seu trabalho, como se tivesse pressentido a presença da velha amiga.
"Sofia", ela chamou, a voz num misto de espanto e carinho, "o que você está fazendo aqui?"
Sofia hesitou, como um pássaro que teme se arriscar no abismo entre o galho e o chão.
"Eu... Eu precisava lhe ver, Raquel", ela admitiu, a voz vacilante e límpida, "eu sinto que uma parte de mim se desfez desde que parti, e a cada passo que dou nesta cidade, me sinto mais perdida e sozinha do que nunca imaginei ser possível."
Raquel abriu o portão, e as duas se abraçaram como se o passar dos anos não tivesse roubado nenhuma parcela de sua amizade e carinho.
"Senta aqui comigo", Raquel sugeriu, indicando um banco de jardim sombreado por uma árvore frondosa, "precisamos conversar."
E foi assim, sob aquela árvore, sede e testemunha de tantas outras conversas e segredos de outrora, que Sofia e Raquel se abriram com uma honestidade dolorosa e límpida.
"Eu sei que você se sente perdida, Sofia", murmurou Raquel, com um olhar constrangido, "e talvez sua volta seja um lembrete para nós, também, de que nossas vidas não seguiram o curso que planejávamos."
Sofia sentiu uma fisgada no estômago.
"Como assim?", perguntou, sentindo um aperto nos lábios e no coração.
Raquel respondeu com um suspiro longo e demorado.
"Nem tudo é o que parece ser, Sofia", ela começou, "nossas vidas também tiveram suas reviravoltas e desafios. Sua partida abriu fendas em nossas vidas que nunca foram verdadeiramente preenchidas, e isso nos levou a questionar, também, a rigidez de nossa fé."
As lágrimas jorravam como pequenas pérolas do rosto de Raquel.
"Perdemos amigos, Sofia, aqueles que caminharam conosco durante tantos anos", ela confessou, a voz embargada, "e nem todas as brechas foram preenchidas com uma nova fé."
As palavras de Raquel entravam como espinhos na consciência e no coração de Sofia, mas também instigavam uma urgência e um desejo de buscar dentro dela mesma a cura e a redenção.
"Eu... Eu sinto muito", Sofia balbuciou, sentindo-se culpada por ignorar o que havia acontecido durante sua ausência.
Raquel segurou firme a mão de Sofia.
"Não se desculpe", ela disse, com uma calma e serenidade que feriam Sofia mais que qualquer raiva ou ressentimento, "cada um de nós deve seguir seu próprio caminho, mesmo que isso signifique enfrentar a dor e o desconhecido."
Com aquelas palavras, Raquel selou o passado e o presente, os lamentos e as esperanças, numa promessa de compreensão e aceitação. Sofia percebeu que, apesar das mudanças e da tristeza que as cercavam, havia algo dentro dela ainda capaz de unir o que antes fora despedaçado pelo vento e pelo tempo.
Ali, naquele jardim onde outrora se dissipavam os medos e a inocência de duas meninas, Sofia e Raquel olharam uma para a outra, e encontraram o reflexo de suas próprias feridas e conquistas no olhar da outra. Entendendo que sua dor também era a dor de todos aqueles que, como ela, buscavam se libertar do jugo de uma fé imposta e ressonante, Sofia percebeu que a verdadeira redenção não se encontrava apenas na superação pessoal, mas também em abraçar e compartilhar a luta e o aprendizado de todos aqueles que, como ela, ousaram sonhar e arriscar a vida em nome do desconhecido e do sagrado que silenciosamente batia e pulsam em cada alma e coração humano.
Uma conversa reveladora com Madalena, sua mãe
Capítulo 12: O Anjo das Lágrimas
O crepúsculo se dissolvia nas últimas cores do dia, minando de sombras e de abismos o jardim da memória e da esperança onde Sofia e Raquel, unidas em um amplexo terno e compadecido, choravam o rio das mágoas e das revelações. Era como se o céu chorasse com elas, seu luto e seu deslumbramento tingindo de fúlgidos e melancólicos matizes a tela onde se desenhavam as últimas despedidas de um dia que caminhava para o término de sua jornada. Ávida por criar uma ponte entre sua vida atual e o rio caudaloso da nostalgia e dos afetos estiolados, Sofia procurava, em meio à névoa de seus pensamentos e recordações, a chave que lhe abriria as fronteiras da compreensão e do amor que exalavam, contritos e assustados, do rosto de sua mãe.
Madalena, com um suspiro profundo, que parecia trazer com ele a dor e o anseio acumulados durante anos de resignação e angústia, lançou-se nos braços de sua filha e chorou junto com ela as lágrimas que, até então, haviam sido aprisionadas no poço mais profundo e oculto de seu coração. Era como se, numa única explosão de sentimentos, o muro que existia entre elas ruisse como cartas em um castelo frágil e efêmero, cada novo suspiro e soluço engendrando uma sintonia dolorosa e redentora entre duas almas que, em meio à luta por suas crenças e seu entendimento, haviam se perdido no labirinto do orgulho e da intransigência.
"Sofia", murmurou Madalena, sua voz trêmula e baixa, como se temesse perturbar o ritual de cura iniciado por suas lágrimas, "deixe-me olhar em seus olhos novamente, minha filha, e deixe-me ver aquele olhar inocente que um dia foi o limite da minha existência."
Dita essa frase, Madalena tomou para si o rosto que um dia parecera moldado por anjos, estudando suas feições como um mapa de vivências e conquistas, como se quisesse enxergar, naquele labirinto de pedra e luz, as portas que, em silêncio, clamavam por um toque de mãos que as libertasse das amarras do egoísmo e do desamor.
"Eu te peço perdão, minha filha, eu te peço perdão por cada palavra amarga e ferida que apequenou o tempo", admite Madalena, soluçando a verdade e a dor enraizadas em sua alma como um hino triste e melancólico.
Sofia, com mãos trêmulas e ardentes, lágrimas como estrelas submersas escorrendo de seus olhos, acolheu o rosto de sua mãe em seus braços, como em um manto de penas e arminho.
"Eu perdoo, minha mãe, eu perdoo a mim mesma e a todos nós, por cada passo em falso e por cada palavra que se perdeu no nevoeiro da ignorância e do ódio", ela declarou, sua voz carregando a força e a serenidade das árvores que, serenas e magníficas, testemunhavam o encontro de duas almas feridas pelo tempo e pelo conflito infindo da fé.
Então, como se um raio de luz rompesse a grossa camada de nuvens e crepúsculo, Madalena, arfando de cansaço e resignação, olhou nos olhos de Sofia, e sentiu a última muralha que a separava da verdadeira natureza do amor e da compreensão desmoronar, suas últimas pedras dando lugar a um rio cristalino e fecundo de perdão e renascimento.
Sentada ao lado do espelho quebrado do passado, Sofia e Madalena, abraçadas e buscam na memória as sementes do distraído ontem, do perdão e do aprender para sempre. Ambas prometeram, nessa dança singela e frágil de olhares e epifanias, jamais permitir que o desapreço e a incompreensão se interpusessem na estrada que, sinuosa e obscura, as levava, dia após dia, a um novo amanhecer. Estavam prontas para reconstruir pontes onde antes só existiam escombros, e ungir os grilhões do orgulho com o óleo e o bálsamo da piedade e da luz.
Naquele abraço doloroso e infinito, naquele crepúsculo de mágoas e de esperança, Sofia e Madalena uniram, por fim, seu amor e seu medo numa promessa de redenção e de cura, onde cada lágrima vertida servia como uma ponte sagrada e luminosa entre passado, presente e futuro, juntando seus corações em um hino de fé e perdão.
Sofia compartilha suas experiências e aprendizados com pessoas que ainda lutam com o fundamentalismo religioso
Capítulo 13: O Verso e a Mulher Renascida
O sol parece ter sido engolido pelos contornos do firmamento, enquanto o crepúsculo derramava sobre aquela cidade uterina o poema da noite. Silenciosamente, Sofia se aproximava da igreja, poiso e prisão, ninho e sepulcro de seus mais ocultos e profundos medos e recordações.
- Você pode fazer isso, Sofia, lembre-se do caminho que trilhou para chegar até aqui - sussurrava Joaquim, sua voz aconchegante como um cobertor de lã.
Tão frágil como uma libélula, Sofia reuniu sua coragem e atravessou aquela porta que lhe parecia a fronteira entre dois mundos, um antes e um depois, onde o peso de suas cicatrizes era ofertado como sacrifício de redenção e esperança.
Lá estavam eles, seus irmãos e irmãs, os rostos que marcaram seu passado e que, em seu presente, clamavam por verdades que não se enquadravam mais no horizonte de crenças e limites que outrora compartilhavam com Sofia.
Coração disparado, Sofia ergueu os olhos, como quem busca um farol em meio à tempestade.
- Não tenha medo, Sofia, estas pessoas são, na verdade, uma parte de si própria - a voz suave de Joaquim sussurrava novamente em seu ouvido, como um estandarte de luz e encorajamento.
Ela respirou fundo e abriu o coração, revelando a todos os presentes a história que dera forma e contorno às suas vitórias e quedas, as pegadas que aravam seu passado e o legado que nascia de cada sopro e lágrima que ofertava como tributo ao desconhecido e à redenção.
Dos olhos de todos, como orvalho sobre rosas e espinhos, as lágrimas brotavam e corriam, terna e silenciosamente, como um rio cristalino fecundado pelo amargo e salutar toque da verdade que também eles buscavam conquistar e abraçar, como um grão de areia desaparecendo na vastidão do mar.
O silêncio, como um farol, ecoou entre os presentes, e em meio ao denso e impenetrável breu, cada mente e coração presente no salão perceberam que, assim como Sofia, sua história e sua luta eram parte do próprio tecido do universo, das estrelas e constelações que regiam e governavam sua jornada rumo à aceitação e ao entendimento do propósito maior que silenciosamente morada em cada criatura e molécula que, cintilantes e errantes, compartilhavam com eles aquele sagrado e ancestral espaço-tempo.
- Obrigada, Sofia, por compartilhar sua história conosco - murmurou uma mulher de olhos afogueados e voz trêmula, sentada em um dos bancos da igreja, suas mãos entrelaçadas como se buscasse encontrar, no abraço fraterno de seus dedos, o alento e a sabedoria que lhe faltavam.
Foi assim, entre lágrimas e murmúrios, que Sofia abriu as portas de seu coração e de sua história a todos aqueles que, como ela, lutavam e clamavam por uma fé que não se resumisse aos dogmas e às limitações impostas por uma hierarquia de homens falíveis e sedentos por poder.
Quando o último rastro de dúvida e resistência desapareceu no horizonte noturno de suas almas, e no coração de cada um daqueles seres que haviam compartilhado com Sofia a luz e a sombra de sua caminhada, nasceu uma centelha de compreensão e esperança, um grão de sabedoria e discernimento que brotou como a semente lançada no seio da terra, ávida por buscar a luz e gerar vida e promessas do desconhecido e do eterno que habitava em cada coração humano.
E somente então as verdadeiras cores, os tons e nuances de suas vidas e suas jornadas, puderam emergir das trevas e envolver, como um manto profundo e aveludado, o sacrário e a morada de cada coração reunido sob aquele teto e aquelas estrelas, testemunhas do passado, do presente e do futuro, surgindo como o arco-íris que nasce após a tempestade, como o canto sublime e redentor que brota de cada lágrima derramada em nome do amor e do aperfeiçoamento humano.
A jornada de amor e redenção
Capítulo 14: A Senda da Reconciliação
A chuva caía como uma cortina translúcida no cemitério para onde, a passos sôfregos e silenciosos, Sofia se dirigia, seu coração apertado e trêmulo transbordando de luto e de saudade. Cada passo que dava parecia marcado pelo eco do tempo e das memórias, como se a sombra de um absoluto que se perdia no abismo das gerações e dos desencontros amainasse o som de suas pegadas e fazia arder em sua alma angustiada as tochas de uma dor que já não sabia se podia mais suportar.
Joaquim, segurando um guarda-chuva cuja vastidão parecia pequena diante da chuva densa e infinita que caía do céu, segurava a mão de Sofia como um amparo e um farol, como se queria, através desse gesto singelo e terno, infundir em seu amparo a força necessária para um encontro que, há muito, esperava por sua coragem e sua compaixão.
- Você está pronta, Sofia? – perguntou Joaquim, sua voz baixa e encorajadora ecoando como um bálsamo no vento frio e espectral que ia e vinha, como ondas em um dúbio e cálido ocaso.
Sofia, respirando fundo como quem busca no ar o alento e o fôlego necessários para os próximos passos, balançou a cabeça afirmativamente e, seus olhos fixos no túmulo que, ao longe, parecia olhar para ela como um espectro de maldição e remorso, apertou a mão de Joaquim e perdeu-se em memórias e lampejos de um tempo que, à medida que a chuva caía e molhava o solo úmido e perfumado de flores e saudades, parecia reconstruir-se sob o batismo sóbrio e clemente das lágrimas que, em silêncio, cortejavam a mais estranha e serena das sinfonias.
Subitamente, como se um sopro mudo e desconhecido emergisse das brumas do horizonte perdido e emprestasse ao tempo e ao espaço tons e matizes que ainda se escondiam nas vértebras da escuridão, Sofia percebeu que não estava sozinha naquele cemitério inóspito e solitário. A poucos metros de distância, uma mulher vestida de luto e segurando um ramalhete de flores desbotadas em suas mãos trêmulas e intensamente pálidas, parecia rezar e chorar, cada lágrima que brotava de seus olhos causando uma profunda sensação de alívio e angústia em seu coração de pedra e de luxúria. Era Madalena. Era sua mãe.
- Mãe, o que está fazendo aqui? – perguntou Sofia, sua voz insegura e comovida, como se as correntes de dor e de ressentimento soterradas sob camadas e mais camadas de silêncio e de mágoa, repentinamente, voltassem aos poucos a dançar, numa sinfonia perversa e indecifrável de desencantos e de fracassos.
Madalena olhou para sua filha, por um momento parecendo perder-se na história que se desenhava em seu rosto e em seus olhos, as lágrimas vertendo de suas pálpebras como o sangue vertido de sua alma cindida, como um rio taciturno e insondável de recordações e de desesperança que clamava, além da tristeza e da condescendência, por resgate e por verdade.
- Eu sabia que viria, Sofia, sabia que viria para prestar uma última homenagem a seu pai, neste dia melancólico e soturno de despedidas e lembranças – disse Madalena, sua voz entrecortada pelo soluçar longínquo e tenebroso que, a passos tímidos e desconcertantes, aprisionava em sua teia de redenção e de paixão cada som e cada reminiscência que teimavam em dar vazão à dor e ao luto que carcomia e esgotava uma alma que, perdida e cansada, clamava por liberdade.
Sofia, sem palavras para expressar o turbilhão de emoções e de saudades que invadia seu coração como um ladrão silencioso e ávido por dissipar todos os rastros e vestígios do amor e do consolo que, melancólicos e impenetráveis, permeavam suas lembranças mais profundas e sinceras, olhou nos olhos de sua mãe e viu, além do sofrimento e do ressentimento que delineava e amputava as correntes tênues e suscetíveis de sua existência, o amor invisível e redentor que, emergindo das entranhas de uma noite escura e inesgotável, derramava, como a chuva e o orvalho, a semente do arrependimento e da compaixão.
- Mãe, não vamos, em vez de sonhar e navegar sozinhas em um oceano de lágrimas e remorsos, tentar buscar, juntas, uma saída para esse labirinto de ausência e desespero que nos atormenta e nos emudece? – indagou Sofia, como se aquele fosse o momento definitivo em que todas as correntes que uniam o espaço e o tempo, a sombra e a luz, começassem a ruir e desfazer-se diante de seus olhos, cada fímbria de memória e de nostalgia derretendo-se sobre a tela inalcançável e sombria que tomava em seus braços o passado, o presente e o futuro, o silêncio e o canto, em um abraço terno e eterno.
E assim, naquele cemitério onde o sopro da morte e do esquecimento parecia desenhar nos ares a melodia etérea e desoladora da separação, Sofia e Madalena uniram forças e amarraram, como em um nó cego e terno, as correntes de um amor que, apesar das mágoas e das dores que os anos haviam sido incapazes de apagar, buscavam mergulhar e resgatar da névoa e do luar, sem olhar para trás, um compromisso que, efêmero e arrebatador, as conduziria, contra vento e maré, ao mais raro e insondável dos encontros: o encontro consigo mesmas e com o verdadeiro mistério do amor que, aclamando e iluminando cada coração humano, tingia de fé e de utopia a aurora singular de um novo amanhecer.
Redescobrindo a conexão com Deus
O crepúsculo se aproximava, tingindo o horizonte de cores quentes que pareciam acender os corações daquela comunidade que, unida em seu desafio aos demônios do passado, ousava buscar a luz do porvir. Sofia, agora um farol naquelas almas em busca da reconciliação com Deus e consigo mesmas, já não era mais apenas a adolescente sufocada pela rigidez de seus pais e de sua igreja. Nos olhos e na esperança de cada um daqueles que a contemplavam com temor e admiração, ela era uma incansável peregrina rumo ao sagrado.
Naquela aconchegante biblioteca comunitária, lar das mais diversas correntes de pensamento e abrigo das infindáveis histórias de vida que permeavam aquele singelo e pulsante cenário, tudo parecia conspirar para que Sofia desse o próximo passo em sua caminhada de abnegação e redenção. Ignorando os ruídos que a emudeciam e lhe desgarravam as forças, Sofia caminhava até o palco improvisado formado por uma longa mesa e algumas cadeiras.
Ascendendo ao palco, Sofia sentia o peso da responsabilidade sobre seus ombros. Olhava para aqueles olhos ávidos e sedentos de direção, e cada passo que dava parecia marcado pelo eco infinito do tempo e das memórias que, esculpidos como chamas errantes e famintas, dançavam em cada esquadrinha da existência que tentava, em vão, desvencilhar-se das garras dos fardos que lhes dizimavam e emudeciam.
– Meus irmãos e irmãs – começou Sofia com voz embargada, o silêncio cortado pelas tormentas das emoções que lhe sussurravam e lhe cintilavam como as chamas e as flechas do mais impiedoso dos crepúsculos –, este não é apenas um encontro de amigos e companheiros de jornada. É, antes de mais nada, um ato de coragem coletivo, um desafio aos cárceres que nos aprisionaram por tanto tempo e nos privaram do direito de viver e sentir a verdadeira conexão com Deus que habita em nós e que clama pelo nosso retorno.
A fala de Sofia foi interrompida em um abrupto silêncio enquanto as lágrimas surgiam em toda a extensão de seus olhos, um mar vasto e profundo de sofrimentos e cicatrizes disputando, entre sombras e luzes, a fugidia e inspiradora canção do recomeço e da libertação.
– Eu sei – prosseguiu, sua voz um estremecimento súbito e frágil, como o ar que s’intilava através das brechas e das falhas naquelas paredes de outrora –, eu sei como é sentir-se perdido, sem esperança, como se toda a alegria e a certeza fossem apenas estrelas distantes ao alcance apenas daqueles que concordam em cumprir as regras e as normas impostas por uma instituição humana, falível e presunçosa. Mas foi justamente o nosso amor, nossa ânsia por redimir e conectar-nos com o Divino que nos trouxe até aqui.
Neste momento, um murmurinho de concordância e emoção aflorou entre aqueles rostos de almas em busca da reconexão com Deus. Todos sentiam que aquelas palavras de Sofia, carregadas de vida e emoção, eram a chama que poderia acender a centelha que tanto necessitavam.
– Eu também estive onde vocês estão. Eu também sofri e lutei contra normas e dogmas que me impediam de libertar meus próprios anseios e desejos – continuou. – Mas agora estou aqui para dizer-vos que em cada um de nós, através das brasas e do luto que carregamos, se esconde a chama inextinguível da verdade e da conexão com Deus. Apenas nós somos capazes de alimentar esta chama, de permitir que ela ilumine o caminho de autorreflexão e aproximação ao divino. Juntos, poderemos buscar a liberdade que queremos e merecemos.
O salão se iluminava com emoções e pensamentos efêmeros e imortais, a cada rosto e a cada coração se reconhecendo e se abraçando na mais bela e profunda das sinfonias: o redescobrir da conexão com Deus e com as próprias almas. E foi nesta atmosfera singular, permeada de esperança e renúncia, de encontros e despedidas, que Sofia se consagrou como a abelha que permeia os ramos e espinhos do mundo em busca do néctar que alimenta e fecunda a vida.
E naquele encontro imprevisto, Sofia percebera que, assim como uma árvore solitária em uma floresta efêmera e insondável, havia, latente em seu coração e em sua história, o anseio de acalentar, em seus braços e em sua alma, o tesouro mais valioso e insuspeito: o reconhecimento de que só através da reconciliação com Deus é que poderia finalmente abraçar, sem culpas ou temores, a liberdade e a grandeza que lhe era destinada desde o começo dos tempos. E, mais importante, sua experiência serviu de exemplo e inspiração para que outros também pudessem reencontrar sua conexão com o divino e libertar-se das amarras do fundamentalismo religioso. Juntos, caminharam rumo a um futuro onde, finalmente, poderiam viver sua fé e amor pelo divino em plenitude e liberdade.
Aprendendo a perdoar a si mesma e aos outros
Capítulo 11: A Natureza da Perdão
A chuva caía em fios finos e leves ao final da tarde em que Sofia encontrou-se com o grupo de apoio dentro da biblioteca comunitária, aquele caleidoscópio social e cultural onde, há pouco tempo, descobriram e redescobriram a insondável e luminosa senda do amor e da fé que, à medida que se entretecia nas páginas e nas estantes de livros e pergaminhos de épocas imemoriais, parecia também se revelar e se solidificar nos corações e nas memórias que, uma a uma, buscavam coragem e amparo para prosseguir a jornada de reconciliação e de entrega a novos horizontes e novos enigmas.
- Sofia, não sabes o quanto estou agradecida pelo convite, por teres me deixado fazer parte deste grupo tão especial – murmurou Madalena, que entrara no recinto com olhos marejados e um sorriso franco e genuíno, como se a própria tempestade de lamentos e culpas que, pelos labirintos e meandros de sua alma, parecia agora se fazer leve e suave, prestes a se dissolver na claridade da clemência e do perdão de que tanto necessitava para seguir adiante e enfrentar os fantasmas e abismos do tempo que, em silêncio, corroía e despedaçava as amarras e os véus da esperança e da contrição.
Sofia, emocionada com a presença de sua mãe naquele encontro, mal conseguia expressar em palavras o alento que, como um vendaval de compaixão e ternura, soprava em sua alma e a fazia se sentir viva e ressuscitada, capaz de transpor as muralhas e limites que lhe haviam sido impostos por traição e pavor, por desamor e desensaio.
- Mãe, quero que saiba que, depois de tudo o que passamos, não há nada mais incrível e gratificante do que ver-te aqui, pronta e desejosa de começar, junto comigo e com todos aqueles que acreditaram e perseveraram, uma nova jornada de redenção e autodescoberta espiritual – exclamou Sofia, estendendo sua mão para Madalena, que, imersa em um pálido e efêmero devaneio, agarrou-a com carinho e gratidão, como se quisesse, através desse gesto singelo e instintivo, silenciar e absolver todas as dores e as mágoas do passado que, emaranhadas no peito e na memória, ainda teimavam, como sombras e veios de remorso e arrependimento, em pairar e amedrontar a aurora fresca e irrevogável que se desenhava no horizonte do tempo e dos encontros.
Subitamente, como se um brilho incompreensível e fugaz chamejasse no ar e lhe devolvesse, em suas infinitas e prismáticas tonalidades, a alegria de ser uma parte insubstituível e valiosa daquele universo de estrelas e de sonhos, Sofia sentiu-se inspirada a compartilhar com aqueles presentes, com coragem e confiança, a tempestade e a ventura de suas experiências e aprendizados, a dor profunda de aceitar suas fraquezas e fragilidades e, em meio à escuridão e ao vazio, encontrar o caminho do perdão e da compreensão que, como um farol entre as brumas e as águas revoltas, parecia agora lhe mostrar, com o resquício invisível e melódico de um suspiro, a verdadeira face e a verdadeira natureza da felicidade e da emancipação.
- Meus amigos, quero que saibam o quanto sou grata por cada história, por cada lágrima e confissão de luta e superação que aqui presenciei e compartilhei – disse Sofia, a voz embargada pela emoção e pela sinceridade que, como um manancial de lucidez e esperança, parecia correr e mergulhar em suas veias e em sua alma como um bálsamo mágico e revelador. – E sei que, como eu, muitos aqui também enfrentaram e enfrentam momentos em que a culpa e o remorso pesam tanto sobre nossos ombros que mal podemos caminhar, mal podemos expirar o mistério implacável da vida que, mesmo em meio à provação e ao desconcerto, ainda se faz presente e sôfrego.
Uma onda de assentimento silencioso percorreu o grupo, cada olhar e cada gesto mergulhados na estranheza e na candura do compartilhamento e da comunhão que, como as chamas que queimam secretas e serenas no âmago da noite e da solidão, ainda se faziam adoráveis e inextricáveis diante da insegurança e da dúvida que, a passos lentos e nômades, rondavam e amedrontavam os corpos e os espíritos que, em vigília, clamavam por redenção e consolo.
- E eis que, justamente quando parece que todas as portas estão fechadas e que o amor é um estranho fugitivo, perdido nas folhagens do tempo e do desencanto, é que nos deparamos com a chave que nos falta, com o elixir invisível que nos cura: o ato de nos perdoar – prosseguiu Sofia, sua voz atada e aconchegada no sopro do vento e na palpitação dos corações que, aos poucos, pareciam acordar de um longo e absorto intervalo de distração e de pesar, o ensejo de um recomeço e de um amparo que clamava, além da dor e da saudade, pela ressurreição e pela afirmação da vida em seu incessante e inacabado percurso.
E assim, naquele instante mágico e revelador, todos ali presentes sentiram, em seus corações e em suas almas, a verdadeira dimensão e força que, ao se perdoarem, experimentavam e testemunhavam a metamorfose profunda e imortal de suas próprias essências, o vislumbre do futuro e da partilha que, silente e paciente, aguardava a chegada do momento em que, erguidos e renascidos em meio às tempestades e às lágrimas, finalmente perceberiam e vivenciariam a liberdade e a plenitude que, vinculosamente e impossivelmente, os arrebatariam e os levariam ao encontro inadiável do amor e da concórdia, do êxtase soberano do perdão.
A força do amor para superar obstáculos
Era uma tarde fria e chuvosa naquela cidade cujas pedras e calçadas pareciam revelar, por entre as fendas e os veios da história e dos anseios dos que, em silêncio e em temor, percorriam seus estreitos becos e vielas em busca do sentido perdido e inexprimível da vida. Sofia, cabisbaixa e introspectiva, sentia-se como se seu próprio coração estivesse sendo varado por cada gota de água que, em torrentes silenciosas e ininterruptas, escorriam e se entranhavam naquelas muralhas de granito e de mágoa que, desde a infância, guardava e abrigava no mais intrincado e solitário abrigo de sua alma.
Não era fácil a vida de Sofia desde que decidira romper com os dogmas e as certezas das Testemunhas de Jeová. A ausência de sua família, desprezada e ofuscada pelos julgamentos e pelas amarras de uma fé irredutível e impiedosa, latejava e se revolvia em sua memória como os gritos inconsoláveis dos mortos e dos corpos que, enterrados e esquecidos nos campos e nos cemitérios do tempo, clamavam ainda pela transformação e pela reconciliação que, de tão remota e intangível, parecia navegar e desterrar-se nas brumas e nas correntezas do esquecimento e da desolação.
Imersa em suas divagações e remorsos, Sofia tropeçou naquelas pedras que, impiedosas como o destino e como os olhos e os lábios que julgaram e desprezaram os sonhos e as esperanças que trazia no peito, ameaçavam e desafiavam o equilíbrio e a resistência de cada passo e respiração que atormentava e acalentava em seu coração o mistério e a inquietação do silêncio e da solidão.
Foi quando, em meio aos seus soluços e amarguras, Sofia atravessou uma rua que há tempos esquecera e escondera de seu próprio percurso e horizonte. Como um sopro longínquo que atravessa e atravessa a tempestade e o temporal em busca do sossego e do apaziguamento, o estreito e vetusto café daquela ruazinha perdida no inverno e no poente parecia brilhar e cintilar, como por encanto e feitiçaria, em um daqueles dias de desesperança e amargura que, no peito e no sangue dos que neles se demoram e se encontram, parecem dissolver e salgar, sem remédio e sem ajuda, o rasto e o vestígio daquelas ilusões e suspiros que, outrora albergados e encarnados na luz e na fé de uma estrela e de um milagre, pareciam agora extinguir-se e exilar-se no vazio e na saudade.
Reunindo todas as suas forças e coragem, Sofia aventurou-se a adentrar aquele desconhecido recanto e refúgio que, mesmo em meio à penumbra e ao silêncio do entardecer, ainda parecia ressoar e pulsar com a vida e a intensidade de ser e de tornar-se o infinito e o irrevogável laço que, nas almas e nas horas, parecesse unificar e suplicar a redenção e a paz.
E foi naquela atmosfera de chá e de café, de risos e de confidências, de enigmas e de acasos, que Sofia cruzou seu olhar com um homem jovem e sereno que, desde muito tempo e muito espaço atrás, parecia eternamente conhecida e amado por sua alma e por sua essência. Pois esse homem, que tão logo percebera a aflição e a angústia que lhe trespassavam e lhe espantavam os olhos e as mãos trêmulas, era ninguém menos que Joaquim, o jovem enigmático e encantador que, anos atrás, em um desses encontros improváveis e irremediáveis, sussurrara-lhe, com carinho e com doçura, a senda obsculta e íntegra de um novo despertar e de uma nova busca por Deus.
Trocando olhares e sorrisos de compreensão e de curiosidade, Sofia e Joaquim estabeleceram um laço invisível e íntimo que transcenderia suas histórias e suas angústias, suas lutas e seus sofrimentos. E a partir desse encontro casual e inesperado, começaram a desenhar inúmeros diálogos, reflexões e sonhos que, por vias enigmáticas e generosas, lhes ofereceriam a chave e o feixe de luz que, em meio às tormentas da vida e da saudade, conduziria seus passos e suas almas ao incrível e imperscrutável mistério do amor e da liberdade.
Uma verdadeira comunidade espiritualmente unida e comprometida com a justiça social
Capítulo 12: O Despertar da Comunidade
As nuvens que, semanas a fio, haviam se derramado sobre a cidade em torrentes de lamentos e de despedidas dissipavam-se, lentamente, no horizonte de luz e de revelação que, como um espelho infinito e inconstante, ressoava e refulgia, através do céu repleto de estrelas e dos olhares de fascinação e de estranhamento que incessantemente percorriam e meditavam, estendidos aos pés daquela terra fértil e desafiadora que, em seu peito e em seu coração, parecia ocultar e encarnar o sentido misterioso e temível do amor e da peleja, do suplício e do enigma da vida que, passo a passo, se revelava e despercebida.
Nesse clima de inovação e de amparo, Sofia e seus amigos decidiram reunir-se na biblioteca comunitária com o intuito de organizar um evento que congregasse as mais diversas crenças e tradições religiosas da cidade, um encontro que harmonizasse e transcendesse as barreiras e as contendas que, de tempo e de espaço em espaço, pareciam solapar e afligir a sensibilidade e a decência de cada enlace e juramento que se despertava e despedaçava nos recantos e nas memórias que, silenciosamente, esperavam e testemunhavam a transmutação e a comunhão que se desvencilhava e dançava no sopro e na evanescência do tempo e da provação.
- Ideia mais louca e mais doce, Sofia! Um encontro no qual todas as denominações e tradições religiosas possam, em harmonia e respeito, aprender umas com as outras e, juntas, atuar em prol da cidade e de suas necessidades sociais, eu nunca teria sonhado com isso há alguns anos - exclamou Pedro, com um brilho de esperança e de paixão em seus olhos que, como uma estrela distante e compassiva, parecia iluminar e sustentar a envergadura e o desvelo do instante e do encontro que se desenhava e se concretizava, em meio à ansiedade e à inquietação, como um sonho e uma semente arrojados e destemidos às águas e à tempestade de encontros e de abismos que, como um farol e uma prece silenciosos, ardiam e se expandiam na incontrolável maré de eventos e de lágrimas que, em sua rota e em suas expectativas, lavravam e desvelavam as estacadas e as muralhas que, em sua arte e em sua maledicência, os inviabilizavam e os relembravam à autenticidade e à convicção dos passos e dos sentidos que, invisíveis e impotentes, se desarraigavam e se consumiam na espaçosa e inacabada noite de enigmas e de esplendores.
Sofia, animada pela empolgação e audácia de seus amigos, não hesitou em criar um grupo de estudo e organização formado por pessoas profundamente envolvidas e comprometidas com a justiça social, para elaborar um movimento solidário e inclusivo que, vinculado à celebração e ao reconhecimento das tradições religiosas presentes na comunidade, na medida em que também se articulava e se projetava em meios e soluções práticas para os desafios que se impunham e se evidenciavam no cotidiano e nas peripécias que, de forma secreta e incisiva, circundavam e instigavam o cenário e a conjuntura dos caminhos e dos corações que, ali e além, clamavam e suplicavam por redenção e por abrigo.
E assim, como num mágico e surpreendente passe de luz e de metamorfose, a cidade, há muito refém e cativa da intolerância e do desamor, viu-se transformada em um palco único e inesquecível onde se sucediam e se revelavam encontros e diálogos entre líderes e adeptos das mais variadas tradições e confissões, onde o intercâmbio entre conhecimentos e experiências religiosas logo deu origem a uma verdadeira e espontânea colaboração no campo social, da saúde à educação, da sustentabilidade à cultura e à arte, num exemplo eloquente e empolgante de que, em sua infinita e luminosa essência, o amor e a compreensão compartilhados eram capazes de vencer e superar as aflições e as divisões mais incrustadas e incisivas nos olhos e nas almas que acreditaram e se entregaram, num sopro e num soar eternos, ao fulgor irresistível e inalienável das vozes e dos encontros que, entranhados e invisíveis, os resgatavam e os enlaçavam, distantes e recínditos, à incomensurável e caridosa atmosfera do amor e da união.